Capítulo 83 - Cecília

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Capítulo 83 — Cecília

— Eu vou pagar, dona Rapunzel — o senhorzinho fala, sentado do outro lado da mesa e eu jogo minhas trancinhas pras costas — Deixa baterem no meu menino, não. Isso é coisa de adolescente.

— Coisa de adolescente, o que, Seu Mariozinho — me irrito, sem um pingo de paciência mais — Com todo respeito ao senhor, mas capaz do seu filho ser mais velho que eu, manda ele tomar um pouco de vergonha na cara e ir trabalhar, ao invés de fazer uma dívida desse tamanho pro senhor pagar.

— Ele faz essas coisas, mas é um bom menino​, dona Rapunzel — ele olha pra mim, todo velhinho fofinho, tentando me convencer — Bate nele, não, moça...

— Seu Mário, o senhor tem que ficar feliz que eu não vou mandar matar o seu filho, porque é isso que acontecer​ia em qualquer outra favela, mas vai tomar um corretivo, sim. Tanto pela dívida, quanto por colocar o senhor nessa situação horrível — ele abaixa a cabeça, triste, sem poder me contrariar — tenho certeza que o senhor deu uma boa educação, mas se não aprendeu com o senhor, vai aprender comigo.

O senhorzinho levanta da cadeira, todo debilitado, tadinho, tendo que vir até aqui pedir pra eu agir com carinho com um marmanjo sem vergonha na cara.

Pikachu aparece na porta e espera encostado no batente, enquanto seu Máriozinho se despede de mim.

— Pode ficar tranquilo que aqui ele não comprar mais droga e se eu ficar sabendo dele dando giro em outra comunidade, o desenrolo vai ser pior — fecho a planilha no tablet aqui na minha frente e Pikachu senta na cadeira que o velhinho tava antes.

— Qual foi, parece até que fui eu que ensinei — diz sorrindo e eu faço o mesmo.

— Alguma notícia? — pergunto, porque não aceito perder as esperanças nunca.

Faz uma semana que a Lorena foi baleada e presa, nós temos poucas notícias, mesmo com os melhores advogados, a justiça tá complicando muito a questão​ da visita, porque sabe que as pessoas próximas à ela tem envolvimento no tráfico.

Pensamos na possibilidade da Rita ir visitar, mas o Capitão mudou os documentos da Lorena quando ela era criança, pra não ter o nome da mãe, e restringiram a visita apenas a familiares.

Ela tá lá com escolta de policiais, tudo o que sabemos é através de uma moradora aqui da comunidade que é técnica de enfermagem lá, mas em outro setor.

— Tiraram os bagulhos lá que fazem ela dormir — respiro aliviada quando ele diz — a mina lá confirmou que ela perdeu um pedaço do fígado, mas disse que essa parada aí cresce de novo.

— Aí, graças a Deus — respiro fundo e encosto na cadeira — Quanto tempo até ela ser transferida pro hospital penitenciário?

— Advogada da facção ta correndo atrás, mas é foda dizer porque vai depender de como ela vai ficar de saúde.

— Deus vai honrar — olho pra ele, sentindo medo — Como vamos resolver isso? Tia Iracema tá desesperada, fala a verdade, a situação do Dedé tá muito ruim?

— Tá não, po, os filhos da puta tem muita coisa não, o que vai pesar é o porte e a associação ao tráfico

Pouco tempo depois da tomada da Penha, Jogador mandou tacar fogo nas coisas do Capitão e acharam fotos atuais do Jogador e da Lorena. Provavelmente o próprio Capitão vazou fotos e agora a cara deles está estampada em todos os jornais da televisão.

— Po, vim te pedir um favor. Tô ligado que tu não tava querendo botar os pés lá na Penha mais, mas hoje teve reunião da facção, Leão vai ficar de frente lá até a Princesa voltar. Tu conhece a favela, tá ligado? Sem Princesa e Dedé, tu é a única que tem propriedade no bagulho

— Suave, eu vou — dou de ombros — Vou de tarde, quem vai comigo?

— Chocolate vai mandar alguém — ele fala, levantando e eu sigo ele com olhar até a porta — Jogador não tá podendo ficar zanzando por aí não.

— Laís tá preocupada dele fazer uma merda — pego meu celular vendo mensagem dela, que foi fazer uma ultra na clínica da família e eu sorrio com a foto da baby dadai na barriga, falta dois meses pra ela nascer.

— Ele não vai fazer, prometeu que só vai pensar em Capitão quando a loira dele tiver em casa. Vou lá resolver umas paradas, qualquer bagulho tu me dá um toque — diz saindo da sala.

Tô irritada por tudo que tá acontecendo, não queria ter que pisar na Penha nem tão cedo, ainda mais sem a Lorena, meu principal ponto de apoio. Meu coraçãozinho não vai aguentar sem ela muito mais tempo não.

(...)

Saio do carro, estacionado em frente a boca, e o segurança que me ignorou em cabo frio tá do outro lado da rua.

— Oi, simpatiquinho  — cumprimento ele, que se limita a responder com um aceno de cabeça dessa vez — olha, temos uma evolução — digo e ouço Concha e Pit rirem atrás de mim.

Na boca, sinto uma nostalgia estranha, porque existe uma Cecília antes e depois desse lugar aqui. Tudo mudou, as pessoas, o meu jeito, minha visão de mundo...

— Tá precisando da minha ajuda, leãozinho? — pergunto pro loiro sentado na mesa remexendo papéis, todo concentrado.

— Ih, não mandaram o papo que tu era a  ajuda — ele sorri quando me vê — O corre acabou de melhorar mil por cento.

— Tu não cansa dessas cantadas de homem safado, não? — digo, colocando minha bolsinha em cima da mesa.

— Não é cantada, é a paixão que renasce quando eu te vejo — fala e eu solto uma gargalhada — Isso, gosto de te ver sorrindo pro homem da sua vida e não com a carinha de quando parou ali naquela porta. Como tu tá se sentindo?

— Mal, mas vai dar tudo certo e todo mundo vai ficar bem, tô praticando a positividade  — sento na cadeira — Não tá dando conta do que? — pergunto, implicando mais com ele.

— Tô dando conta de tudo, mas não conheço a comunidade bem igual tu, que nasceu aqui — se justifica, passando a mão pelos cordões de ouro, enquanto fala.

— Vamo dar uma volta então — eu levanto e pego minha bolsinha, onde está minha arma — Mas faz favor de parar com isso — aponto pra ele.

— Parar com que? — pergunta, levantando também e me seguindo.

— De ficar sendo um gostoso, me irrita — falo e vejo, por cima do ombro, ele sorrindo.

— Você gosta, trancinhas de ouro — chega perto do meu ouvido enquanto andamos e eu sinto um arrepio.

— Vou colocar uma trança vermelha pra você parar com esses apelidinhos que me resultaram num vulgo ridículo — viro de leve o rosto pra olhar pra ele.

— Eu arrumo um novo, vou te chamar de pequena sereia.

— Senhor — nego com a cabeça — deixa meu cavalo andar, Leão.

— Impossível depois do chá que tu me deu, minha rapunzel.

Eita que a tarde vai ser longa.

Sonho dos crias [M]Onde histórias criam vida. Descubra agora