Capítulo 91

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Capítulo 91​ — Jogador

— O filho da puta não mudou contigo — sugiro, depois de ouvir toda a história que a mulher me contou.

— No começo, sim — ela passa a ponta do dedo logo abaixo os olhos e limpa uma lágrima, me fazendo enxergar como ela e Lorena são parecidas — Minha gravidez foi perfeita, ele me tratou como rainha, escolheu o nome da Lorena, montou o quartinho dela.

— E a parada toda mudou por que?

— Depois que ela nasceu, mataram o Bala dentro da cadeia e seu pai deixou de ser frente do Alemão e passou a ser dono. O Bala não tinha família e deixou tudo pro seu pai, você já deve ter ouvido essa história — ela diz e eu concordo, história de vida do meu pai era uma parada que eu conhecia bem — Só que anos antes, o Capitão, que morava no Alemão também, tinha migrado pra Penha, pensando que teria mais oportunidade de subir na hier​​arquia lá. A intenção dele era que o Nanal fosse também, mas sua mãe tinha acabado de descobrir a primeira gravidez e ele resolveu ficar.

— Capitão invejou a conquista do meu pai — passo a mão no cavanhaque, tentando lidar com o ódio que só cresce desse filho da puta.

— Eu não posso dizer que ele voltou a ser o monstro de antes, porque ele tava mil vezes pior dentro de casa — ela nega com a cabeça e eu sinto pena do que essa mulher passou — Minha vida era a minha filha, eu não consegui terminar a escola, focava cem por cento nela.

— Ele machucava ela? — pergunto, com medo da resposta.

— Não, sabia que a facção não aceitava covardia com criança, tratava ela bem, porque criança não tem filtro, criança diz a verdade e ele não queria correr o risco dela se lembrar dos episódios de violência e acabar contando pra alguém​. Fora que aquele homem tem um ego tão grande que ele colocava a Lorena num pedestal, não por ser a menininha linda e amorosa que ela era, mas porque era fruto dele, era uma extensão da vida dele, hoje eu vejo isso.

Eu entendo o que ela quer dizer e vejo verdade em cada palavra. O Capitão só deixou de ser um bom pai pra Lorena quando ela deixou de ser conhecida como "filha do Capitão" e passou a ser a "Princesa".

— Ele fez uma bagunça no Comando da Penha pra se tornar dono, inventou uma operação e matou cinco, todos que estavam acima dele, porque pra ele era uma vergonha não ser tão poderoso quanto o seu pai. Eu descobri tudo, ele deixou a Lorena no berço e me deu uma surra quando eu o questionei.  — ela continua —  Matheus, eu só pedi pra ele deixar eu fugir com a minha filha, disse que ele nunca mais ia me ver na vida, nem eu, nem ela, mas ele não deixou, falava que a facção valorizava a família e ninguém ia atrapalhar os planos que ele tinha pra filha dele. A filha que ele nem queria ter.

O mais incrível é que ninguém nunca suspeitou desse cara. Um comando inteiro caí, a mulher vai embora e ele continuou sendo o coitado que teve que segurar a barra de tudo.

— Por isso você foi embora e deixou ela com ele? — pergunto, sem julgamentos, mas querendo muito entender.

— Não, dessa vez ele me mandou embora sozinha, mas eu voltei, vim direto pro Alemão e ele já tava me esperando lá embaixo. Ameacei ele, porque não tinha cabeça pra lidar com aquela situação, disse que se ele não devolvesse a minha filha, ​ia contar pra Daiane, que o Nanal faria ele perder toda consideração na facção. Eu planejava contar que ele me batia e o que tinha feito com os antigos donos da Penha, mas ele disse que mataria a mim, Lorena e Daiane antes que seu pai soubesse de qualquer coisa, era só eu colocar meus pés nesse morro que estavam nós três mortas.

— Meu Deus — respiro fundo, porque as histórias desse cara não​ param de me surpreender — Como que alguém consegue ser tão filho da puta assim?

— Uma coisa eu aprendi sobre pessoas como o Capitão, eles nunca perdem sozinhos. Ele pode até perder, mas ele vai fazer sangrar do outro lado também. Eu tinha duas alternativas, derrotar ele ou permitir que minha filha e minha amiga vivessem — ela me olha nos olhos — E eu só acreditei nele porque, dessa vez, a surra que ele me deu, me colocou na cama de um hospital numa cidade no interior do rio.

— Você tinha dezesseis e ficou sozinha.

— Numa época que não tinha a comunicação que temos hoje, eu tentei ligar pra sua mãe de um orelhão pra contar tudo, mas quando ela atendeu, eu ouvi a voz dele no fundo e só pedi pra que ela cuidasse da Lorena, porque eu não ia conseguir mais cuidar da minha filhinha sem colocar ela em risco — o nariz da moça fica vermelho e ela chora compulsivamente.

— Ela cuidou — digo, de braços cruzados, relaxado na cadeira —Era Deus no céu​ e Lorena na terra até o último suspiro da minha mãe. ​

— Eu sabia que ela ia cuidar — a mulher chora cada vez mais e eu fico um pouco incomodado, sem saber o que fazer — Eu voltava, procurava saber com tava a vida de vocês através das babás que o ​​Capitão colocava pra cuidar da Lorena, não me aproximava, mas sabia das coisas. Uma vez eu voltei e a Daiane não estava mais lá, a minha amiga, irmã de alma. Ela não merecia.

— Ninguém merece ficar doente do jeito que ela ficou — digo, engolindo em seco — Nenhum filho merece ver a mãe naquela situação.

— Eu deveria ter voltado, eu pensei em voltar, era sua madrinha e vocês precisavam de mim, eram tão pequenos, três ​​crianças sem mães.

— Se você voltasse, meu pai teria morrido junto com ela. Ele só se recuperou porque era o único capaz de cuidar de mim e do Sábio. Se você voltasse, o encontro entre eu e Lorena não aconteceria exatamente do jeito que foi e eu não estaria com a mulher da minha vida agora. Não queria que você tivesse voltado antes, não por mim. — sou sincero — Sem querer te julgar, mas se tivesse que voltar por alguém, que voltasse pela sua filha.

— Eu sei, mas eu podia ter evitado a morte do Maurício — abaixa a cabeça, limpando as lágrimas.

— Ou o Capitão teria plantado uma bala na cabeça de cada um de nós ainda naquela época. Não tem como saber  — dou de ombros — Só quero te perguntar uma coisa, você acha que o Capitão teve a ver com a operação que matou meu pai?

— Eu já não estava mais aqui, mas a inveja que aquele homem sentia da família de vocês era muito grande. Eu não duvidaria.

— Ele se fudeu, porque eu não vou deixar ele me matar tão fácil quanto das últimas vezes.

Sonho dos crias [M]Onde histórias criam vida. Descubra agora