Capítulo 116

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- Deixe a raposa em paz, Billy, ela é uma criatura inocente!

- Ela é meu novo chapéu! - rebateu, exibindo a espingarda como um troféu.


Marilla ofereceu que ela e suas meninas acompanhassem Muriel até em casa, o que ela aceitou de bom grado.

Tania, no entanto, pediu desculpas e disse que precisava ir para Greengables. Não sabia se era forte o suficiente para arriscar se deparar com fotos e pertences antigos de Jonah. Não sabia se algum dia seria forte o suficiente.

As três não foram para a casa da professora. Na realidade, Nan disse que precisava deixar comida para sua raposa e que as adultas poderiam acompanhá-la se quisessem, o que fizeram com curiosidade. Anne as levou ao Clube de Estórias e, quando elas perguntaram sobre as esculturas, cometeu um erro terrível: lhes contou sobre o fato de Cole não estar indo à escola.

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Tania acordou cedo, comeu uma torrada com bananas e doce de avelã e bebeu um grande copo de água. Juntou algumas frutas, pães e uma garrafa de café numa cesta e a levou até o celeiro, onde Marilla, Mathew e Jerry já trabalhavam. Deixou comida e xícaras de café com os irmãos Cuthbert no andar debaixo, antes de subir e levar o resto para Jerry.

- Bonjour mon chérie! Comment vas-tu? Est-ce que je t'ai manqué? - cumprimentou, sentindo o francês enferrujado enrolar sua língua.

- Oui! Nous n'avons pas parlé depuis des semaines, je commençais à penser que tu m'avais oublié - brincou.

- Jamais me esqueceria de você, Baynard. Como vão as leituras? - sorriu, notando um livro grande e velho escondido no feno.

- Lentas - disse timidamente.

- Mais rápidas do que as minhas, então. Estou presa no mesmo livro a semanas e ainda não cheguei nem na metade - suspirou.

- Pourquoi?

- J'étudie comme un fou. Et vous, como anda preenchendo seus dias?

- Ah, você sabe. Trabalhando, lendo, enchendo o saco das minhas irmãs, lendo e trabalhando - sorriu para ela, que forçou os cantos de sua boca a subirem um pouco.

Foi nessa hora que ouviram um grito de Anne, que estava pegando os ovos. Correram para o galinheiro, onde Mathew e Marilla tentavam entender o que perturbava a ruiva.

- Por que você não me escuta? - ela esbravejou com Mathew e saiu correndo.

- Anne? - o homem estranhou, já se apressando atrás dela - Anne!

- Deixe que eu tomo conta dela - falou Nia, tendo visto os ovos quebrados que Nan havia deixado cair na armadilha de raposa.

Tania seguiu Anne até o Clube de Estórias.

As ruínas dele, para ser mais exata.

Na procura de seu refúgio, encontraram madeira estraçalhada e papéis espalhados pela grama. Trêmulas, as duas andaram devagarinho pelos destroços do que fora um lugar tão especial.

Nia pensou, por um segundo, que o que via era o fantasma do Clube, mas rapidamente percebeu que aquele era apenas o corpo sem vida, que o espírito da casinha de madeira, pedacinhos da garota e de seus amigos, fora arruinado com sua estrutura.

A Stacy se abaixou devagar e pegou uma pequena cabeça de argila, uma das dezenas de partes quebradas das esculturas de Cole que estavam dispersas ao seu redor.

Desde que adquirira coordenação motora suficiente, Cole Mackenzie era artista. Quando seu quarto deixou de ser espaçoso o bastante, ele fez do depósito de sua casa um ateliê, e o dividiu com a alma quebrada que se conectara à sua, que lhe provara que ele não precisava ser inteiro para ser amado.

Desde muito antes de adquirir coordenação motora suficiente, Tania Stacy era artista. Contava histórias de dormir para seu pai, ao invés de ouvi-las, dançava desequilibrada ao som dos discos de vinil da mãe até altas horas da noite, fazia bagunça com as tintas da cunhada. Quando morou em orfanatos, roubou carvão das cozinhas e rabiscou cantos escondidos das paredes; em Avonlea, dividiu sua arte com an alma incompleta à qual se conectara.

Naquele momento, an alma quebrada e an alma incompleta estavam jogadas pelo chão, estilhaçadas e pisoteadas, todas as esculturas quebradas em mil pedacinhos, as estórias amassadas e cobertas de terra.

A alma de Anne não estava quebrada ou incompleta, na realidade, era tão grande e cheia que mal cabia no corpo. Naquele momento, as páginas que a compunham, as narrativas que a haviam salvado, estavam completamente destruídas.

Naquele momento, o refúgio deles, onde eram livres, onde criavam, onde foram acolhidos, não mais existia.

Após o choque inicial, Tania percebeu que Cole também estava ali, olhando ao redor, ofegante, sentindo o coração quebrar como as esculturas.

E, entre toda aquela dor, sua raiva explodiu.

- Vocês me traíram! - Nia parou no meio de um soluço de tão confusa - Eu confiei em vocês!

- D-do que você tá falando? - chorou Nan.

- Trouxeram a professora aqui! Falaram de mim pra ela - gritou enquanto lágrimas grossas lavavam suas bochechas.

- Eu não sei do que você está falando - disse Nia, em tom de quem implorava. Ao invés de parar, ele simplesmente se voltou para Anne.

- Estava tão desesperada assim por atenção? - começou a andar de um lado para o outro - Ela contou pros meus pais que não vou à escol-

- Eu estava tentando ajudar - jurou a ruiva, aos prantos.

- Você arruinou a minha vida - ele berrou - não vão mais me deixar sair da fazenda. Nem mesmo pra escola. Está acabado! Eu não tenho nada!

- Cole, não fala isso - a Stacy se aproximou dele, que ainda tremia de ódio - C-cole..

- Quem faria isso? - observou os destroços, voltando-se para a Shirley - Você sabe quem fez isso?

- Nã-

- A quem mais você mostrou?

- A ninguém, a ninguém, e-eu não sei - soluçou.

Em meio à briga, Tania olhou mais uma vez ao redor, e notou algo que a fez sentir ainda mais raiva do que Cole.

Ela se ajoelhou e puxou, detrás de uma tábua caída, o cachecol de Billy Andrews.

Nan mal teve tempo de juntar os pontos antes de os amigos correrem até a escola em um frenesi de fúria.

O Mackenzie podia até ter pernas maiores, mas a Stacy era mais rápida. Ela abriu a porta com o impulso da corrida e se lançou contra Billy, derrubando-o no chão. Sem nem pensar no que estava fazendo, socou sua boca forte o suficiente para o anel que Gilbert lhe dera fazer um corte fundo. Blythe tentou puxá-la de cima do Andrews, mas ela se livrou dele com uma cotovelada e disferiu mais um golpe, dessa fez contra o olho do loiro. Billy não queria ser um covarde, mas queria menos ainda apanhar para aquela puta, e a tirou de cima de si com um chute; para a sorte do loiro, Bert a segurou.

Nem mesmo se levantara e já foi novamente derrubado por Cole Mackenzie, mas dessa vez estava preparado e inverteu as posições, batendo as costas do oponente na parede. Entretanto, o ódio de Cole era tanto que, mesmo magricela como era, ele conseguiu jogar Andrews no chão e adicionar hematomas à pequena coleção que a amiga deixara.

Foi aí que Gilbert interferiu e, se vendo livre dos braços dele, Tania voltou ao trabalho e enfiou o joelho agressivamente na barriga de Billy, enquanto o namorado tentava afastar o Mackenzie dali. William usou seu peso para prender a garota no chão, e segurou suas mãos acima da cabeça com agressividade. Ela cuspiu no rosto dele.

Mais enraivecido do que nunca, Andrews deu um tapa violento na cara dela. Bert soltou Cole, e este empurrou Billy de cima da amiga, jogando-o longe. Antes que qualquer um pudesse impedir, a orelha dele bateu no ferro terrivelmente quente do aquecedor a lenha que ficava no centro da sala, e o Andrews urrou como nunca fizera na vida. Assustado, Mackenzie se afastou dele, e Prissy e Jane se apressaram até o irmão.

Tania ainda ofegava apoiada nos cotovelos quando Cole saiu correndo da escola. Se esquivando do Blythe, ela correu atrás do amigo, sendo acompanhada por Anne, que chegara logo depois deles.

Elas o seguiram até o penhasco. Aquele inferno de penhasco.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora