91- Um Mundo Mais Cinza

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Depois de um jantar bem-humorado, talvez por conta do vinho, seguimos até o terceiro andar para uma noite de sono longa e tranquila, aonde Heitor me acolhe em sua conchinha e ali adormeço com o som de sua respiração.

Acordo na manhã seguinte com o garoto me envolvendo em um abraço que me puxava para perto de seu corpo.

-Bom dia, meu amor.- diz alegremente em meio a beijos carinhosos na nuca.

-Bom dia.- digo me espreguiçando, o sol já brilhava forte iluminando o quarto, aquilo me faz questionar o horário e também os efeitos do álcool, não sentia nenhum efeito colateral além do sono prolongado, de qualquer forma era domingo e não havia problema em algumas horas a mais na cama.- Dormiu bem?

-Dormi como uma pedra.- afirma, enquanto me viro na cara para ficarmos frente a frente.

-Pelo visto acordou como uma pedra também.- digo observando o grande volume em sua calça.

-Ah, você sabe como é... Ereção matinal.- diz dando de ombros, lhe dou um beijo carinhoso antes de finalmente tomarmos coragem para sair da cama.

Antes de ir ao banheiro vou até minha mochila em busca de uma camisa, sons de panela batendo dois andares abaixo diziam que Cassandra estava de volta e não queria descer descamisado, soaria tão vulgar naquela manhã quanto realmente era, por mais que a mulher soubesse não queria parecer alguém que havia sido feito de gato e sapato a noite inteira por seu filho. Por fim visto uma camisa azul claro e aproveito para buscar meu celular matando a curiosidade, eram nove horas e dezesseis minutos, realmente tínhamos dormido muito.

Por fim ponho o aparelho no bolso da bermuda e corro na direção do banheiro, bem a tempo de ver Heitor finalizando a escovação de seus dentes. Enquanto passo a pasta na escova ouço a som do homem do lado oposto mijando, o que na realidade era um susto de início, nunca havia dividido o banheiro naquelas condições com alguém, mesmo em banheiros públicos não usava os mictórios, demoro alguns instantes pra entender que não havia nada de errado ali, principalmente porque era meu namorado e o que ele usava pra mijar eu colocava na boca (Eu sei, é um pensamento estranho, mas essa é a vida de um casal). Por fim o homem dá descarga e baixa e tampa de privada. "Esse é pra casar" penso fazendo um sorriso brotar em meu rosto, encaro a aliança em meu dedo, que sorte a minha, não é mesmo?

Quando estamos prontos descemos para a cozinha, aonde uma Cassandra feliz nos recebe, sua atenção se voltava quase que cem por cento aos anéis em nossos dedos.

-Vejam só, parece que alguém disse sim. Bem-vindo à família Gabriel, ou devo te chamar de genro?- a mulher vibrava com cada centímetro de seu corpo baixinho, como se tivesse a certeza de que agora não fosse mais mudar de ideia e correr até o meu pai e contar que seu filho era prole do Diabo.

-Pode me chamar como quiser.- digo lhe dando liberdade.

-Tudo bem, putinha do Heitor.- nomeia risonha, ok, liberdade demais.- É brincadeira! Prometo ser cordial, o fato do Heitor ter te dado o anel não muda nada.

"Não muda nada" disse a mulher que mal se aguentava em alegria, a qual dá uma piscadela pra mim, fazendo meu namorado finalmente perceber o duplo sentido em sua fala.

-Nunca! Eu nunca dei o anel pro Gabriel, está louca?!- ao ouvir isso ela encara o filho indignada.

-Heitor! Você quase deixa seu namorado andando de muletas quando usa esse negócio que tem no meio das pernas, aí quando tocam no assunto dele te comer faz esse escândalo todo? Qual é o problema se ele te pegar?- questiona ela exigindo explicações.- E olha que o pau do seu namorado nem deve ser grande coisa, não é nada pessoal querido.

Naquele momento já não sabia se Cassandra estava a meu favor ou contra, bem, não sentia toda essa necessidade de ser ativo, talvez fosse uma experiência interessante para ter, mesmo com medo de fazer um péssimo trabalho, mas também não precisava ouvir que tinha um pau mixuruca.

-Mãe!- repreende o garoto, ao contrário do comum, são suas bochechas que ficam vermelhas e não seus olhos. -Eu seria...

Antes que o garoto possa completar sua frase o telefone em meu bolso toca, um silêncio se instaura no recinto, Heitor parecia grato por não precisar falar mais, rapidamente apanho o aparelho, na tela está o nome de Abigail, êxito por um instante mas por fim atendo.

-Oi.-digo ouvindo choramingos ao fundo.

-Gabriel? Gabriel! Aonde você está?- pergunta, havia urgência e medo em sua voz.

-Eu... Eu estou na casa do Heitor.- digo tentando entender o que estaria acontecendo, um filme passa em minha mente, meus pais chegando em casa um dia mais cedo e de alguma descobrindo sobre mim e Heitor, meu sangue gela.- O que...

-Graças a Deus! Eu fiquei sabendo que seu pai tinha ido pra São Paulo e pensei que você pudesse ter ido junto, e que você e o Heitor pudessem...- a voz da garota soava embargada, lágrimas? Nada parecia fazer sentido.

-Abigail, o que está acontecendo? O que tem em São Paulo?- pergunto, minha cabeça começa a construir outra história, sinto o pânico de ter meus pais envolvidos em um acidente fatal de carro.

-Você ainda não viu?- pergunta lamentosa, a dor de sua voz preenchia meus sentimentos.- Eu estava aqui com...

Há uma pausa na fala, como se tivesse pisado em uma mina terrestre e só agora percebesse, continuar seria como tirar o pé de cima detonando a conversa, lá estávamos nós dois em silêncio, ela tão preocupada comigo por algo que acontecera e agora com medo de falar por algo que havia acontecido por sua personalidade impulsiva, suspiro antes de dar o primeiro passo.

-Sim, você estava com o Bernardo,- digo olhando para Heitor, que faz uma cara desgostosa.- Tudo bem, o que houve?

-A parada gay, aconteceu uma tragédia.- diz se desmanchando em lágrimas.- Está em todo lugar, nos sites, na televisão.

Ouço aquilo com dificuldade, incrédulo corro na direção da sala, ali apanho o controle e ligo a TV, não havia a programação normal, apenas um plantão de emergência, ali a repórter dizia.

"Nessa manhã de domingo, no último dia da parada LGBT temos o pesar de anunciar um atentado contra a vida dos participantes, o número de vítimas continua a subir, esse talvez seja o pior ataque da história à comunidade, um movimento coordenado com bombas plantadas ao longo da avenida, com a certeza de centenas de mortos e feridos, o atentado ainda não foi reclamado por nenhum grupo, um dia difícil para todos nós, as recomendações são para que todos evacuem as ruas, não sabemos se haverão outros ataques, o Brasil hoje deixa seu manto colorido para um manto vermelho, coberto de sangue e preconceito."

Na tela há uma visão área sobre a Avenida Paulista, embaixo há correria e desespero e dor, carros de polícia e ambulâncias aos poucos começam a chegar, existem muitos feridos, há também corpos no chão sendo cobertos por cobertores e bandeiras daqueles que ainda ficavam e ajudavam na proteção dos corpos, em um corte mostram vídeos de celulares do momento em que as bombas explodem, a gritaria é terrível de se ouvir.

Sem nem ao menos perceber Heitor se põe ao meu lado, me consolando,  Cassandra assistia às notícias horrorizada, do outro lado da linha Abigail havia perdido a capacidade de falar, ambos chorávamos vendo tudo aquilo. Era doloroso demais imaginar tal cena, por fim fraquejo e me volto na direção do homem, me escondendo da TV. Aquele que parecia um dia tão feliz, de conversas bobas e inocentes anoiteceria cinzento, havia medo, havia dor, havia luto.

Meu Demônio (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora