94- Línguas Estranhas / Reviravolta

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A presença da missionária era um problema cujo tamanho ainda não sabia, a fato dela estar vasculhando meu quarto certamente era um alerta vermelho, como havia dito "Quem deve, não teme" mas quem procura quer encontrar, mas o quê? A mulher nem ao menos havia me visto antes para poder desconfiar de mim e Heitor. Maldito seminário, devia ter sido lá que meu pai conhecera aquela ratazana.

Precisava contar sobre aquilo para Heitor mas tinha medo, o garoto provavelmente não receberia bem a notícia e isso pioraria ainda mais nossa situação, teria que contar pessoalmente.

Alguns minutos depois ouço minha mãe bater na porta me chamando para o almoço, permaneço em silêncio, sabia que era melhor evitar qualquer conversa para não acabar discutindo ainda mais. Do andar debaixo ouço berros do meu pai quando não desço, porém logo cessam por conta das súplicas da minha mãe. Se eles quisessem almoçar podiam fazer isso com a magnífica convidada deles.

Depois de uma hora percebo que aquele castigo demoraria mais do que imaginava, logo era melhor dormir. Tiro o uniforme vestindo uma roupa leve e não muito tempo depois estou dormindo, não há sonhos, apenas escuridão e tudo parece bem até ouvir uma voz flamejante: Cuidado com o inimigo. Acordo assustado nesse momento com alguém batendo na porta.

-Jantar.- chama minha mãe.

Queria ignorá-la e permanecer ali mas sabia que morrer de fome seria uma má ideia e significaria ter meu pai na porta, suspiro antes de levantar.

Caminho pelo corredor a contragosto, não precisava de espelhos para saber o quão irritado estava com tudo aquilo, por fim chego na cozinha para encontrar a cena mais revoltante possível.

De lados opostos na mesa estavam meu pai e minha mãe, ambos observam com olhos de desaprovação ao captarem o meu ânimo. Grandiosamente, na ponta da mesa está Damares, em toda sua pompa e carbonização como se fosse a anfitriã e não a convidada. Para muitas pessoas aquilo poderia passar despercebido, mas eu conhecia o pastor e sabia o quanto ele fazia questão de se postar como o patriarca e provedor. Alguém havia enfiado a hospitalidade no cu da missionária e inflado lá dentro, não era possível.

Em ódio e indignação tomo a cadeira oposta a dela, ficando o mais distante possível.

-Você é só um menino, não devia se sentar na ponta.- diz a missionária estreitando os olhos em minha direção.

-E você é só uma convidada, não devia se sentar no lugar do meu pai.- retruco deslizando o olhar dela até o homem, que permanecia fechado a mim.

-Gabriel, ela está aqui pela missão e pode sentar aonde quiser, você não tem que se meter nisso.- responde ríspido.- E não se esqueça que você só sai do castigo quando ela te perdoar pelo que fez.

-Eu tenho saudades da época em que precisava do perdão de Deus e não de uma desconhecida de ego inflado que invade meu quarto e se joga no chão quando é pega.- aponto, aproveitando a chance que tinha pra contar o verdade do que havia acontecido.

-Mais respeito, ela é uma missionária!- grita ele fazendo minha mãe se encolher.

-E isso deveria me impressionar? Pra mim ela não passa de uma...

-Shaba karasun ibiolei sarum!- anuncia Damares aos berros, por um momento me atenho, incrédulo do que ouvira, o que diabos haviam sido aquilo.

-O que você pensa que está fazendo?- indago tentando controlar o vocabulário para não destilar as maiores atrocidades contra a mulher, a qual vira os olhos para três e volta a berrar.

-Imkipá sebiotai Shaliem Bidoh!

-Ela fala em línguas estranhas, não blasfeme contra ela.- diz o pastor em forma de ameaça.

-Meu filho, você não pode ficar bravo só porque não entende a graça dela.- afirma minha mãe em um tom ameno, encaro seus olhos vazios.

-Isso não é real, isso é...- digo lentamente soltando as palavras entre os dentes semicerrados.

-Serambatú Inkilô...- começa mais uma vez.

-CALA A BOCA!- grito perdendo a paciência de vez enquanto bato a mão na mesa em um estrondo.- Cala a porra da boca, eu já me cansei de você! Tudo o que você faz é inventar um monte de palavras sem sentido e guinchar como a porca que você é.

-Aaaaaah- grita a missionária em agonia mais uma vez.

-Gabriel!- berra o pastor mais uma vez, porém ignoro-o.

-Não! Isso já foi longe demais!- digo me levantando enquanto aponto o dedo na cara de Damares.- Você fica se fazendo de vítima pra que as pessoas tenham pena, que se foda que colocaram fogo em você, isso não te dá direito de fazer o que bem entende. Podem ter pena dela o quanto quiserem, mas eu já estou farto.

Por um instante o silêncio reina, penso que vão gritar comigo, porém a primeira pessoa a falar Damares com sua voz sulfurosa.

-De onde você tirou esse anel?- indaga com malícia e perversão apontando para a minha mão, meus pais se viram a mim com um olhar incriminador, por um instante meu sangue gela, percebo meu erro em não tê-lo escondido enquanto estava em casa. Ali estava eu com três pessoas que queriam estragar tudo o que Heitor e eu tínhamos feito de bom no fim de semana, encaro a missionária que me encarava com olhos estreitos e deformados, satisfeita por tirar o foco de si para me jogar no fogo. Naquele momento decido que não cairia para ela, me recomponho e endureço.

-Eu achei ele na rua nesse fim de semana, não é da sua conta.- as últimas palavras saem lentas e ríspidas.

-Mas está na dedo anelar.- continua ela acusatória.

-Foi o dedo que coube, meus dedos não são deformados como os seus.- respondo pondo a mão sobre a mesa, escondê-la seria uma prova de que havia algo errado, não estava disposto a perder para Damares.

-É um belo anel, parece de ouro, não é certo que você fique com ele só porque achou, deve doá-lo pra igreja, coisas achadas não são de Deus.

Aquela sugestão era horrível por muitos pontos, mostrava que a missionária provavelmente desconfiava da procedência do anel e querendo doá-lo faria que eu o perdesse, caso contrário estaria demonstrando que o objeto era mais do que um simples achado, mas talvez a pior parte fossem meus pais concordando com a ideia.

A simples suposição de deixar o anel de Heitor me magoava profundamente, era doloroso, injusto e inaceitável, sabia que ele me perdoaria, mas não faria o mesmo com os outros, assim que contasse isso ao meu namorado ele estaria no minuto seguinte na minha casa para tirar a história a limpo, e a julgar pela situação que Jonas havia ficado... Provavelmente deixaria meus pais e Damares sem lembrarem nem o próprio nome. No momento tudo o que poderia fazer era remediar para evitar o pior.

-Talvez devesse doar ele mesmo, mas não pra igreja de vocês, vou dar ele pra quem eu bem entender.

-Do que você está falando, filho? Eu sou pastor!- lembra meu pai indignado.

-E do isso importa? Sua igreja já não tem dinheiro suficiente não? Ao que parece você está tendo condições até de trazer uma mendiga mal acabada pra morar na sua casa. O anel é meu e eu vou entregar ele pra quem eu quiser.

-Shabakn...- começa a missionária mais uma vez, soco a mesa com força-a fazendo a parar.

-Não se atreva a fazer isso na minha frente de novo.- ameaço a mulher que põe a mão sobre o peito, indignada.- Se me dão licença estou indo para o meu quarto.

Subo as escadas em meio aos berros do pastor e súplicas da minha mãe para que eu coma algo, porém era inútil, preferia passar fome do que lidar com aquilo. Chegando ao quarto tranco a porta e me deito, aonde adormeço lutando com meu estômago.

Meu Demônio (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora