107- Os Cacos De Cassandra

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Toda a adrenalina gerava pelos eventos daquele manhã aos poucos se esvai, agora pensando mais claramente sentia em meu braço queimado a dor do impacto causado por Cassandra, quando prensara-o na porta. Não era sua culpa, aquela era a atitude de uma mãe tentando proteger seu filho, podia parecer algo estranho, afinal era de mim que estávamos falando, mas e se as coisas tivessem sido diferentes? E se minha reação fosse horror ao invés de alívio, imagino que na posição de mãe tentaria tudo, até suas mentiras agora pareciam dignas de perdão.

Lentamente os afagos de Heitor se tornam mais lentos até finalmente cessarem, quando sua respiração se transforma em um ronronar, o garoto havia dormido. Que horas deviam ser? Não fazia ideia, tudo o que mais queria ela ficar ali, porém entendia as implicações disso, havia sumido de casa e logo fariam as contas deduzindo que não estava na escola, o que transformaria a situação em uma busca por mim, não queria ninguém na casa de Heitor, logo o melhor a fazer era partir, por hora, com um último beijo em sua bochecha me despeço e rastejo cuidadosamente para fora da cama.

Desço as escadas para encontrar Cassandra sentada no canto do sofá, encarando a TV desligada, porém seu foco parecia estar muito mais distante, na quina do assento encontra-se um copo de chá, o qual espalha seu aroma de hortelã pelo cômodo.

Sem ser percebido, encaro-a por alguns instantes. Era estranho pensar no fato de que aquela mulher tivera um relacionamento e até mesmo um filho com o Diabo, porém agora era difícil vê-la na mesma perspectiva, afinal Heitor era um demônio e aquilo não mudava em nada meus sentimentos por ele. Provavelmente era a pessoa mais próxima de entendê-la.

-Cassandra?- chamo, despertando-a de seus devaneios, o que faz a mulher se assustar, derrubar seu copo, o qual cai no chão se espatifando.

-Ah... Oi.- diz ela se abaixando para recolher os pedaços, corro para ajudar.

-Eu te assustei, né? Eu sinto muito.- digo agachado à procura de cacos remanescentes.

-Não, não tem importância, algumas coisas não tem volta, só... Já foi.- diz a mulher lançando um olhar triste na direção do chão, nesse momento percebo algo.

-Você não está se referindo ao copo.- observo o quase óbvio. Era claro que estávamos falando de Heitor, os acontecimentos dos últimos dias haviam mudado sua vida permanentemente, sua escolha me salvando tornara sua vida muito mais difícil do que era naturalmente. Por fim ela balança a cabeça, como se tentasse espantar algo ruim.

-Você não viu quando ele chegou naquela noite em casa, não viu o terror nos olhos dele, tendo que lidar com tudo pela primeira vez, completamente sozinho. As pessoas viam ele e ficavam horrorizadas, ele teve que varrer a rua manipulando a mente de quem aparecesse, o seu corpo tremia de exaustão e pânico. Mas eu sou mãe, foi minha função engolir o choro e fingir que tudo ficaria bem.- Por mais que parecesse, aquele não era um ataque pessoal a mim, mas sim um desabafo daquilo que jamais admitiria a Heitor ou qualquer outra pessoa. Cassandra assistira meu encontro com seu filho e sabia que jamais julgaria sua aparência, não havia ao menos exitado diante de sua aparência. Agora tínhamos uma tarefa em comum, cuidar de Heitor. Por fim ela suspira.- Ele dormiu?

-Sim, ele fica lindo dormindo.- deixo escapar, o que me deixa um pouco acanhado.

-Fico feliz que esteja descansando um pouco, os últimos dias foram difíceis pra ele. Nos primeiros dias eu podia ouvir ele chorando de noite, até tentei me oferecer pra dormir na mesma cama, como fazíamos quando era pequeno, mas ele recusou,- Aquilo me faz lembrar o pequenino Heitor, que vira nas suas visões- Depois veio a raiva, ele quebrava coisas no quarto, gritava e amaldiçoava, de manhã sempre havia uma sacola cheio de cacos e pedaços na frente da porta dele, e por fim veio o pior de tudo... O silêncio...

-Mas por que...

-Por que o silêncio é o pior?- pergunta ela, como se aquilo fosse algo óbvio demais para se perguntar.- Porque ele significa que a pessoa parou de lutar, é o momento em que ele percebe que toda a luta e todo o esforço foram em vão, não há como barganhar com esse tipo de derrota.

-Acho que entendo, ou quase isso, eu estava feliz por ter perdido o Heitor.- confesso, o que faz a mulher me encarar confusa e quase irritada ou ultrajada.- Quando estive no hospital não tive notícias dele, esperei que viesse me visitar, mas nada. Depois de um tempo pensei que vocês tivessem levado a frente o plano de ir embora, eu realmente queria que vocês tivessem ido, porque isso significaria que ele estava a salvo.

Ouvir a minha versão parece faz seu rosto se suavizar, restando algo que beira uma suave satisfação, não, aquilo não era satisfação, era reconhecimento.

-Ele não iria embora sem você.- suspira ela, encarando os cacos de porcelana acumulados em suas mãos.- Meu filho é diferente de mim, eu sempre fugi , sempre tive medo, temia pela vida do meu menino, que um dia descobrissem sua verdadeira aparência, mas cá estamos nós agora, todo aquele medo foi em vão.

-Ei!- chamo sua atenção . A frustração de Cassandra diante do que ela via como fracasso era algo quase inaceitável.- Não fica assim, você fez tudo o que pôde, e criou um filho maravilhoso mesmo com tudo que aconteceu. Se ele aprendeu a ser corajoso e determinado, foi por sua causa.- Antes que eu de pôr mim, estou abraçando-a.

-Queria que as coisas fossem mais fáceis e ele não precisasse sofrer tanto, queria que o pai dele fizesse o que fez da primeira vez, eu pedi tanto e não tive nenhuma resposta.- desabafa ela.

-Como o pai dele ajudaria?- pergunto confuso, nem ao menos sabia que ainda mantinham contato, por um instante ela exita, porém logo percebe que aquele segredo merecia ser compartilhado comigo.

-O Heitor nasceu como está agora, vermelho e bem... Você sabe, eu não sabia o que fazer, não podia contar com ninguém, o que as pessoas fariam se o vissem daquele jeito? Não tinha vergonha dele, mas as pessoas... Elas são cruéis, e naquela época clamei por ajuda, então novamente o seu pai veio e trouxe consigo uma segunda pele para Heitor. Aquela foi a última vez que o vi pessoalmente, mas eu precisava tanto de sua ajuda mais uma vez, só que nem um sinal eu recebo.

Me permito sentir raiva daquele homem, de sua irresponsabilidade e sua ausência, mas seria melhor se ele estivesse ali? Que problemas sua presença causaria? Não conhecia-o, mas temia o que poderia vir a representar, mas ainda assim... O que estava esperando para vir ajudar seu filho?

-Bem, não adianta ficar irritada, e no mais acho que está na sua hora.

-Você tem razão, preciso ir embora antes que apareçam por aqui me procurando.- digo, o que lhe faz assentir sutilmente. A última coisa que queríamos era minha família ali, Cassandra joga os cacos do copo no lixo e então nos dirigimos à porta, antes de partir me viro uma última vez para a mulher.- E por favor, quando o Heitor acordar diga a ele que eu o amo.

Meu Demônio (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora