108- Ponto de Ruptura

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A volta pra casa tem um tom mais colorido por onde passo, a urgência que tinha ao subir a ladeira já não existia mais, mesmo com todos os empecilhos sabia que tinha um Heitor muito menos assombrado que dormia calmamente sobre sua cama, sabia que não estava sozinho e não seria abandonado.

Penso na hipótese de encontrar os alunos na saída do colégio, porém isso não acontece, talvez já tivessem partido ou ainda fosse muito cedo, minha noção de tempo sempre fôra meio ruim e com os acontecimentos recentes piorara bastante, para completar havia deixado meu telefone em casa. De qualquer forma, não tinha pressa, na realidade poderia passar o restante do dia zanzando pela cidade ou nem mesmo dar as caras, tentava em vão afastar um pensamento eminente de minha cabeça, sabia que aconteceria em breve, restava apenas prolongar aquilo na medida do possível.

Um fiapo de consciência toma controle dos meus passos quando rumo até minha casa, realmente não podia permitir que procurassem por mim na casa de Heitor, tudo o que não eram elas próximos do garoto que amava. Com isso em mente bato a porta de casa e após alguns segundos surge minha mãe, a qual tem um semblante preocupado.

-Meu querido, você voltou, aonde estava? Estávamos preocupados com você!- diz a mulher se curvando para um abraço, imediatamente recuo, quase que num movimento instintivo. Estava ciente de que aquela era minha mãe, mas receber qualquer afeto dela, sabendo de tudo o que acontecera, não me parecia mais certo.

-Não, sem contato.- peço, áspero. Aquilo faz a preocupação aflorar em seu rosto, a pena e a empatia que costumava sentir, pelo contrário, me mantém apático a tudo.

Passo pela porta da sala de jantar, aonde Damares e o pastor conversavam acaloradamente, pelo visto nem todos estavam tão preocupados com meu breve sumiço, o assunto na mesa girava em torno de um novo seminário na cidade, por um breve momento meu pai vira sua atenção a mim, o que é suficiente para que eu deixe o local.

Meu quarto que costumava ser aconchegante perdera todo o seu encanto, não passava de um mausoléu, abaixo dos meus pés, há um andar de distância, estavam as pessoas que costumava chamar de família e agora nem ao menos suportava a ideia de tê-los por perto. Eles haviam matado Bernardo sem qualquer sinal de remorso, aquele incêndio havia estragado tudo, arruinado a vida de Heitor, de Abigail, de Cassandra, a minha... Mas tudo havia sido pior para Bernardo, ele era novo demais e inocente o suficiente pra morrer daquele jeito. O garoto podia não ser perfeito, mas não cabia a eles decidir seu direito de viver ou não.

Imagens horríveis que sequer presenciara passam pela minha mente, Bernardo inconsciente, queimando até sobrar um resto miserável para ser enterrado, Heitor em desespero, tendo que lidar com a realidade de sua aparência enquanto fugia dos olhos horrorizados das pessoas, Abigail ouvindo sobre o incêndio, correndo para descobrir horas depois, que seu grande amigo havia morrido, as noites não deviam ser fáceis para ela, sonhos que se repetiam e sempre refrescavam os nossos piores horrores.

O rastro de maldade não parava por ali, antes das coisas chegarem até nós, essas mesmas pessoas estavam em São Paulo quando o ataque à parada gay, o número de mortes no fim havia sido de quase quinhentas pessoas. Mesmo que o incêndio da biblioteca parecesse muito mais pessoal sabia que aquelas vidas também eram importantes, por trás de cada número havia uma história a ser contada e que fôra brutalmente encerrada.

O que será que eles fizeram depois do incêndio? Comemoraram até descobrir que eu também estava lá dentro? Não, aquele era um trabalho feito em sigilo, depois de feito restava apenas voltar pra casa e fingir que nada acontecera, pela manhã pessoas viriam te contar sobre o acontecido e você fingiria surpresa ou pesar, enquanto por dentro haveria a satisfação de uma tarefa cumprida, acreditaria estar fazendo parte de um projeto maior.

Aquelas ideias me enojavam, era perturbador a ideia de pessoas celebrando a morte de pessoas como Bernardo, da mesma forma me assustava a ideia de não saber quem são essas pessoas, poderia ser qualquer um, era aterrorizante não poder confiar em ninguém, mas o que isso mudava? As pessoas que eu mais confiava estavam ali, tão normais quanto sempre haviam sido e no fundo eram detestáveis. É claro que não estava me referindo a Damares, ela sempre fôra detestável.

Se fosse por eles, eu estaria morto...

"Se fosse por eles, eu estaria morto" aquela frase me acerta com força, todos os laços que me prendiam pareciam se romper ao perceber o quão descartável eu era, tudo não passara de um acidente, mas o aconteceria no momento em que soubessem que sou gay? Talvez meus pais não me matassem pessoalmente, mas haveria quem fizesse o serviço. Meu pai era pastor afinal, com certeza não poderia ter um filho gay, tudo aconteceria como foi com Bernardo, um trágico acidente, sem culpados, apenas vítimas... Aquilo era demais pra mim.

Nesse momento tomo a decisão que vinha se estendendo desde a manhã, talvez até por mais tempo e só não tinha coragem o suficiente pra admitir. Arrumo cuidadosamente meus cadernos e livros na mochila escolar, sigo até o armário e depois de encontrar minha bolsa de viagens faço as malas com todas as roupas que nela cabem, busco qualquer coisa que valha a pena e caiba na bagagem e saindo pela porta observo o cômodo uma última vez, saudoso.

Chegar de malas feitas causa assombro e confusão na cozinha, minha mãe é a primeira a vir em desespero.

-Meu filho? Não faz isso.- diz agarrando a alça de minha bolsa, porém afasto-a, indiferente aos seu drama, isso é suficiente para que o pastor se levante irritado da mesa.

-O que você pensa que está fazendo?!- indaga ultrajado, aquele era meu pai, ríspido e inflexível, pronto para atropelar a opinião e a vontade de qualquer um. Porém ele estava enganado, eu não vinha até ali para brigar ou discutir, restaria a ele lidar com as consequências. Damares assistia a tudo, com um olhar de vitória, todas as nossas discussões e seria eu a deixar aquela luta.

-Eu sei de tudo.- digo finalmente, minha voz não carrega qualquer sentimento que poderia imaginar, raiva, superioridade... Há apenas a apatia de quem não conseguia mais reconhecer a própria família e tinha motivos suficientes para se desprender. Minha frase, mesmo que curta, parece acertar a todos com violência, a mãe cai no choro, o pai exita, Damares perde seu brilho vitorioso e parece repensar sua soberba, encarando-me como um inimigo perigoso.

-Do... Do que está falando?- pergunta o pastor, tentando contornar a situação.

-Eu sei que o incêndio não foi acidental e que estão por trás dele, não sei quantas pessoas mais estão envolvidas nisso, mas não tem importância. O Bernardo foi uma ameaça à liderança de vocês e decidiram acabar com ele, deve ter sido uma surpresa descobrir que estava no prédio também.- acuso, enquanto minha mãe se derrama em lágrimas, o pastor corre os olhos na direção de Damares, que está alarmada, encurralada.- E não é a primeira vez que fazem isso, a viagem até São Paulo, vocês foram pra participar do ataque à parada gay.

-Você não pode provar nada.- responde a missionária, tentando se recompor, porém apenas ignoro suas palavras, meus olhos se voltam ao pastor.

-Vamos lá, diga que estou mentido, diga que estou inventando e estou me desviando da igreja e a culpa é do Diabo.- exijo, ninguém fala nada porque no fim não podem.-Foi o que pensei. Pelo respeito que ainda restou por vocês, peço que não me procurem, em troca não direi nada sobre isso.

Não há qualquer argumento vindo do pastor, ele sabia que estava errado, mesmo com tudo, minha mãe suplica para que eu fique, é inútil. Aos poucos me desvencilho de sua insistência saio pela porta, estava deixando aquela casa sem qualquer perspectiva de voltar.

Sempre me preocupara com o dia em que teria que me assumir para os meus pais, tinha medo de que descobrissem meu terrível segredo e me expulsassem de casa. Tudo mudara. Cá estava eu, saindo sem ter sido expulso, afinal eram eles que tinham um terrível e imperdoável segredo, o dia de me assumir pros meus pais nunca chegaria porque eles já não faziam parte da minha vida, passara anos me preocupando com a hipótese de machucar seus sentimentos e agora eram eles me machucando, estava partindo e tudo o que restava naquela casa eram dois estranhos pra mim.

Meu Demônio (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora