Estar de castigo era a pior opção possível pra alguém como eu, o confinamento me fazia pensar para além dos meus limites, não havia nada que pudesse me distrair realmente. Por mais alarmante e urgente que aquelas conversas pudessem parecer não queria dizer nada para Heitor, não podia, o garoto que ficara perturbado com a conversa com sua mãe provavelmente entraria em desespero novamente, e a última coisa que queria ver era ele sofrendo.
Mesmo afastando as suspeitas de terem descoberto o segredo de Heitor, algo dentro de mim continuava incomodando, a sensação de que algo estava errado, de que talvez estivesse me esquecendo de algo e aquilo acabava comigo.
De qualquer forma havia percebido algo, Damares parecia estar se comportando de forma menos irritante e insuportável do que antes, talvez os poderes de Heitor tivessem funcionado e ele apenas tivesse se enganado afinal. Por mais agitada que estivesse a minha mente não conseguia pensar muito além dos meus problemas atuais, queria conversar com ele e sabia que precisaria ser pessoalmente, ainda assim estava ciente de que matar aula mais uma vez não seria uma boa ideia, não era o tipo de coisa que passaria despercebido e não me impressionaria se meus pais recebessem uma ligação questionando tais faltas inexplicadas. Frustrado, me jogo na cama bufando, eu não era bom com planos e nunca havia sido, essa sempre fôra a parte de Abigail.
-Abigail!- digo a mim mesmo em um sobressalto, por que não havia pensado nela antes? A garota sempre estivera um passo a frente de todos quando o assunto era planos mirabolantes. Lhe mando uma mensagem no celular rezando para ser visto, para minha sorte ela atende quase imediatamente.
"Me ajuda com uma coisa?" pergunto, talvez mais misterioso do que gostaria, alguém que pede ajuda não deveria ser tão enigmática, mas sim ir direto ao ponto.
"Sempre" responde prontamente, então continua com outra mensagem. "O corpo de quem vamos ocultar? Eu dirijo"
O humor absurdo de Abigail faz um sorriso brotar em meus lábios. Passo os minutos seguintes explicando minha situação e contando boa parte da verdade, escondendo apenas o óbvio e necessário, para a garota que vez ou outra soltava comentários revoltados e sarcásticos sobre a conversa, por mais brincalhona que fosse a conversa dela sabia que a mulher estava completamente focado nos assuntos tratados ali, por fim depois tudo chega a hora de pedir.
"Por conta de tudo isso eu queria arranjar um jeito de conversar com Heitor a sós, não vamos demorar muito, mas não podemos ser ouvidos, então se tiver algo em mente pra nós arranjar ficaria realmente grato". Peço finalmente, depois de alguns segundos a garota responde mensagem com uma risada.
"Pode deixar, querido, já tenho algo em mente"
"O quê?" Pergunto surpreso com a ideia de que já tivesse pensado em algo.
"Espere e verá, espere e verá"
Penso em protestar e argumentar o quão injusto era me deixar curioso e apreensivo na situação que já me encontrava, mas sabia que seria inútil. Restava apenas me conformar e esperar o dia seguinte. O restante do dia passa lento e tedioso, constantemente preciso me controlar para não mandar uma mensagem para Heitor, sabia que se o fizesse acabaria despejando tudo por mensagem, coisas que ele precisaria da companhia e apoio para ouvir.
A noite chega finalmente e com ela o jantar, Damares e o pastor mais uma vez se comportam com discrição, poucas palavras são trocadas, quase como se uma estranha apreensão rondasse a mesa, talvez meu pai tivesse esperança de manter a paz e naquela situação o justo seria cooperar, ao final da refeição ajudo minha mãe com a louça e subo para o meu quarto, dormir não seria tarefa fácil mas precisava tentar.
*****
Um pássaro negro voa sobre o mar, água plana e calma se estende por todas as direções, tudo ali era água e céu. Ventos fortes chicoteiam as penas do animal e ele opta por descer alguns metros, àquela surgem pontos cinzentos sobre a superfície do mar, formatos irregulares e de certo modo, familiares. A cabeça do pássaro se curva, pensativa, analítica, e então ele despenca, mergulhando na direção da água, estamos a um segundo de atingir a superfície quando fecho os olhos, pronto para o impacto.
Toda a apreensão parece ter sido em vão, temendo um impacto que nunca aconteceu, abro os olhos para encontrar a escuridão absoluta, talvez estivesse na água, sentia meu corpo flutuando mas não tinha outro sentido além desse, nesse momento há luz, um brilho vermelho-alaranjado se projeta abaixo dos meus pés e dele surge uma voz masculina e sombria.
-Você decidiu ficar.- acusa ela, tinha a cabeça aérea, tento responder mas é inútil, logo a voz continua.- Não há o que fazer além de perguntar. De quem é a culpa?
O brilho aumenta até preencher tudo e nesse momento acordo, sobressaltado, tudo não passara de um sonho, porém minha mente segue presa à última pergunta, "De quem é a culpa?".
O conteúdo daquela noite ecoa pela manhã, enquanto me arrumo, tomo café e vou para a escola, por mais que soubesse e repetisse que não era real, algo parecia estranho, preocupante.
Seria aquele um aviso, estaria eu condenando Heitor ao seu fim quando lhe pedira pra lutar? A culpa seria minha afinal. Balanço a cabeça tentando afastar tais pensamentos quando me aproximo da escola.
Para minha surpresa Heitor já havia chegado naquela manhã, seus olhos tinha um aspecto cansado, sinal de que não havia dormido bem, me pergunto se ele teria tido o mesmo sonho que eu, mas acabo decidindo evitar o assunto, não queria o garoto ainda mais preocupado com sonhos ameaçadores. Opto finalmente por lhe dizer o necessário.
-Precisamos conversar.-afirmo olhando ao nosso redor, seus olhos tentam decifrar o que está acontecendo.
-Certo, pode falar.- diz prontamente, apto a ouvir.
-Aqui não, precisa ser um lugar seguro, em particular.- explico, antes que ele possa questionar continuo.- Abigail disse que vai conseguir uma brecha pra mim do castigo, queria poder ir até a sua casa, mas não podemos matar mais um dia de aula.
Os olhos do garoto fitam meu rosto, porém depois de alguns segundos ele decide aceitar.
-Tudo bem.
Não demora muito para que ela apareça, entrando pelo portão da escola, Abigail desfila alegremente em nossa direção, e em suas mãos há um livro massivo, grosso e quadrado como um tijolo, sua atenção agora está voltada a mim, com desaprovação ela se aproxima.
-Muito feio, hein Gabriel?- diz ela jogando o livro em minhas mãos, uma velha a amassada de Senhor dos Anéis: Volume Único, tão pesada quanto grande.- Já tem uma semana que você pegou esse livro na biblioteca e ainda não devolveu, acho melhor fazer isso ainda hoje ou vai se meter em problemas.
Com isso ela me cumprimenta com uma piscadela astuta, perceber seu plano me faz sorrir.
-Obrigado.- digo lhe abraçando.
-Você deveria ir no final da tarde, quando a biblioteca está mais vazia.- indica ela.
Por mais que esquecesse às vezes não podia negar, bolar planos mirabolantes sempre fôra a parte de Abigail.
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Meu Demônio (Romance Gay)
RomanceGabriel prometeu a si mesmo nunca se apaixonar, o que as pessoas diriam se descobrissem que o filho do pastor é gay? Apenas a idéia de prejudicar seu pai o fazia estremecer. O tímido rapaz passa seus dias focado, deixando sua vida de lado enquanto...