112- Está Tudo Bem

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"Está tudo bem"

Mentalmente repito a frase enquanto minha mãe deixa o pátio da escola, não devia sentir nada por ela, qualquer sentimento deveria ser enterrado junto com as cinzas do incêndio na biblioteca, havia sido aquele o momento em que tinha perdido minha família, não tinha feito nada mais do que me assumir pra uma estranha, talvez não uma estranha, mas alguém sem tanta importância.

Abigail está a minha espera nas mesas entre o ginásio e as salas de aula, claramente tinha assistido minha discussão e estava preocupada comigo.

-Gabriel, aconteceu alguma coisa?- a garota se move, tentando oferecer apoio e um abraço caso quisesse, porém recuso, por mais que quisesse seu acolhimento sabia que iria desmoronar caso aceitasse.

-Está tudo bem.- digo, sem ao menos acreditar naquilo, estava tão convicto que a primeira lágrima escorre antes mesmo de atravessar os portões.

-Gabriel?- chama ela, em um tom cheio de preocupação, a garota já havia sofrido demais e seria injusto chorar minhas dores pra cima dela, apressado sigo na direção do banheiro sem olhar pra trás.

O lugar estava frio e vazio, os alunos não costumavam ter permissão para saírem na primeira aula, respiro fundo e lavo o rosto na pia, tentando esconder os olhos molhados, como poderia ser tão infantil? Havia cuspido na cara da minha mãe que era gay mesmo sabendo o que faziam com pessoas iguais a mim, não tinha pensado na segurança Heitor, apenas destilado o veneno que guardava desde o incêndio, até onde meus pais podiam ir? Minha mãe me pouparia ou estaria naquele mesmo momento contando tudo pro pastor?

Tinha raiva deles, da missionária e qualquer outra pessoa que pudesse estar envolvida, estava disposto a tudo pra salvar as pessoas que amava, mas ainda assim era tão assustador encará-los diretamente, tento desesperadamente assumir o controle dos meus sentimentos. "Está tudo bem", mas está tudo bem até já não estar mais, aquela mudança poderia acontecer em um estalar de dedos. Não devia estar ali, na escola, meu ânimo não era estável o suficiente pra aquilo, a ideia de ficar ali no banheiro encarando a pia era péssima, mas sair e lidar com o mundo fazia meu coração disparar tanto quanto, o que estava fazendo ali? Devia estar ao lado de Heitor, não conseguiria protegê-lo àquela distância.

Tum tum, tum tum...
Meu coração batia,
Tic tac, tic tac...
O tempo passava.

O que estava fazendo ali? Com as mãos trêmulas largo a pia e caminho até a porta do banheiro, do lado de fora Abigail me espera, antes que eu diga qualquer coisa sou acolhido em seu abraço, demorou alguns instantes até retribuir o gesto, sinto seu carinho através das bandagens em meus braços.

-Tudo bem ficar triste.- diz perto do meu ouvido.- Eu aprendi isso da pior forma, sei que isso parece um conselho genérico mas, sufocar as coisas só vai piorar tudo, uma hora você vai acabar explodindo.

-Eu não quero explodir.- respondo, enquanto meus sentimentos afloram e o abraço se desfaz.

-Mas Gabriel, você já explodiu.- reconhece ela, seu olhar era cheio de piedade e afeto.- Mas isso não é um problema, só dói demais chegar nesse ponto e é difícil sair.

-Eu... Eu...- tento argumentar mas é inútil, me sentia fraco e envergonhado por não ser capaz de controlar o que sentia, eu era um inútil com um namorado triste, um desejo de vingança sem qualquer plano e uma amiga triste que me consolava ao invés do contrário, falhara como amigo, como namorado, como pessoa.

-Está tudo bem, que tal sairmos daqui e conversarmos num lugar mais calmo?- oferece gentilmente, os funcionários da escola não ficam felizes quando seguimos na direção da saída, haviam regras, mas Abigail não estava interessada em ouvir, seu humor borbulhante de sempre havia mudado desde o incêndio e agora tinha um pulso mais firme, ao invés de discutir ela simplesmente põe as cartas na mesa, éramos alunos ainda traumatizados pelo que acontecerá alguns dias atrás, ambos definitivamente abalados e livres de qualquer julgamento normal, por fim conseguimos deixar a escola.

Ao chegarmos no pátio há um impasse, ela queria descer e encontrar um lugar confortável para conversarmos, eu não queria ficar tão longe de Heitor, depois de alguns minutos de estranhamente acabamos subindo e alguns metros acima sentamos em uma área gramada, aquele era um condomínio pouco movimentado, geralmente só usavam as casas nos fins de semana, ninguém se importa com nossa presença. Ali permanecemos por alguns minutos, em silêncio.

-Eles te expulsaram de casa, não foi?- questiona sem rodeios, não era uma novidade, aquele sempre fôra seu jeito, ir direto ao problema. Permaneço mudo, não queria mentir para a garota, mas a verdade parecia tão ruim quanto, precisava guardar aquilo, meu silêncio é interpretado como concordância e ela continua.- Olha Gabriel, sei que deve estar triste, eles são sua família e podem não ver agora quem você é, mas um dia as coisas podem ser diferentes, e mesmo que isso não aconteça você tem o Heitor e a mim, minha casa não é grande, mas arranjo um canto se precisar.

-Obrigado.- digo suavemente, nunca tinha pensado na hipótese mas era verdade, Abigail me acolheria de bom grado se fosse necessário.

-Agora eles sabem que você é gay.- reflete a garota, aquela frase faz um tremor percorrer minha espinha, eles sabiam e não tinha ideia do que fariam com essa informação, aquela frase paira no ar como uma ameaça.- Aposto que a sua mãe veio aqui te pedir pra se arrepender, dizer que está desviado...

Tento dizer algo, mas tudo o que sai é um resmungo que poderia ser aprovação, negativa, um pouco dos dois, um pouco de nada. Aquilo não estava me ajudando em nada, conversar era algo completamente inútil, no fundo sabia que a culpa era minha e não chegaríamos em lugar nenhum, uma grande perda de tempo e...

-MAS QUE DROGA, GABRIEL!- Abigail explode, sua paciência comigo acabara. - Eu estou tentando te dizer algo, te apoiar e você fica aí calado, você acha que é o único sofrendo aqui? Eu também estou mal e até agora estou falando sozinha! Tudo o que estou tentando fazer é resolver o seu problema.

-O meu problema não é tão fácil assim.- digo, áspero, ela já tinha problemas demais...

-Ah, é?! Seus pais te expulsaram de casa e você tem aonde morar, tem alguém que te ama e...- ela joga aquilo na minha cara e é demais pra mim, estouro finalmente.

-Eu não fui expulso, fui eu quem saiu de casa!- exclamo, ela recua confusa, porém não consigo me conter enquanto as palavras me fogem, aponto o dedo em sua cara enquanto falo.- Você também sairia se soubesse que sua família quase te queimou viva! Que só sobreviveu porque seu namorado te salvou a tempo! É claro que eu não disse nada, você diria no meu lugar?!

Mais uma vez estou chorando, diante de uma Abigail boquiaberta, seus olhos revelam confusão diante daquelas falas, como se encaixasse peças de um quebra-cabeça cuja imagem no final fosse macabra e dolorosa demais de se ver.

-Bernardo...- sussurra ela, pondo as mãos na cabeça como se tentasse agarrar um pensamento.- Foram eles... Foram eles? Mataram o Bernardo

A dor da descoberta é visível no rosto de Abigail, lágrimas correm por suas bochechas vindo de seus olhos furiosos, os quais rapidamente se prendem em mim.

-Me desculpa, eu...

-Desde quando sabe disso? Por que não fez nada? Mataram ele, você soube e não contou nada pra polícia? Eu sei que eles são seus parentes, mas isso?

-Abigail, não são só eles, a polícia nem se preocupou em investigar, não sei quantas pessoas estão envolvidas nisso, dizer algo pra polícia não faria nada.- explico apressado, o olhar louco da garota tenta se manter na conversa.

-O Heitor...- deixa a palavra-pergunta no ar, sua preocupação é remota e nublada, havia mentido pra ela e aqui estávamos, tento ser o mais sincero possível.

-Ele não é mais o mesmo desde o incêndio e acho que não vai voltar a ser.- admito aquilo que jamais faria com ele por perto, a ideia de que seu estado era permanente. A mulher me fuzila com um olhar estranho, um sentimento que não conseguia reconhecer e então se levanta.

-Aqueles desgraçados, eu vou acabar com a raça deles!- exclama com um tom de voz venenoso, demoro a entender o que está acontecendo.

-Ei, aonde você vai?- minha pergunta era tola, no fundo sabia seu destino.

-Estou indo na sua casa, vou descer a mão na primeira pessoa que encontrar.- afirma com a voz cheia de ódio, porém ela pára por um instante.- Damares... Acho melhor você voltar pro Heitor, ele precisa de você.

Com isso Abigail parte, tinha certeza apenas de uma coisa, nenhuma língua estranha salvaria Damares do que estava por vir.

Meu Demônio (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora