105- Exílio - Parte II

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O vento frio da manhã chicoteava a vida matinal da cidade, era um horário estranho para mim por ali, os alunos já não estavam mais nas ruas (ou se estivessem, estavam muito à frente). Nas calçadas outras pessoas caminhavam vagarosamente rumando aos seus empregos ou afazeres, infelizmente não tinha qualquer paciência para seus ritmos desanimados, qualquer um entre mim e Heitor era um obstáculo, lembro-me de ouvir resmungos e protestos enquanto esbarro abrindo caminho. Aqueles não eram bons modos, mas é provável que meu estado afastasse discussões.

Aquela era uma urgência cega de certa forma, o que faria quando encontrasse o garoto? Ficaria feliz e lhe daria um beijo? Ou gritaria sobre como havia sido imbecil por não ter fugido, o que ainda estava fazendo naquela cidade? Tinha mágoas de Cassandra que tentara levar Heitor sem motivos e agora, com o mal à espreita, não fizera nada. Também era obrigação dele deixar aquele lugar, e no mais, por que não tinha me visitado no hospital ou mandado qualquer mensagem se queria ficar? Não havia lhe dirigido a palavra desde o incêndio porque queria facilitar as coisas pro garoto e agora isso? Tinha tanta vontade de beijá-lo quanto queria lhe dar um soco.

Subir a ladeira da escola não ajudava na concentração dos meus pensamentos, havia muito oxigênio indo para o corpo e pouco indo pro cérebro. Pensava que nossa relação tinha passado daquela fase de estranhamentos, tinha vivido um exílio nos últimos dias completamente em vão, quando tudo o que queria estava tão perto, ao meu alcance.

Na metade da subida acabo dando uma pausa em busca de fôlego, tinha um misto de sentimentos que me deixavam fora do ar. Por mais que alguns falassem da mágoa que sentia dele, nenhum me fazia querer voltar atrás, por mais ressentido que estivesse, tudo o que queria era ver Heitor. Determinado, volto a subir enquanto assisto minha respiração se condensar em vapor.

Deviam passar das sete horas quando finalmente chego ao quintal de sua casa, o sol ali ainda não chegara de forma cem por cento satisfatória, a maioria das luzes da casa permanecia apagada, mas isso não era nenhuma novidade. Sentindo a ansiedade balançar meu estômago bato na porta, alguns segundos se passam e não obtenho resposta, aquilo faz com que eu bata novamente, dessa vez com mais força, de dentro da casa ouço alguma movimentação e então por uma fresta surge o rosto preocupado de Cassandra, ao me ver seus olhos se arregalam e ela tenta fechar rapidamente, porém sou mais rápido ao pôr o braço entre o vão, mesmo com ataduras sinto o impacto sobre minha pele fraca, ainda assim não recuo.

-Vai embora! O Heitor não quer mais te ver.- suplica a mãe, lutando contra a minha obstinação, as palavras dela não faziam sentido e mesmo que fizessem, não me importava, precisava encontrá-lo, saber o que estava acontecendo.

Jogo meu peso contra a porta forçando a entrada, desajeitado caio no chão ao adentrar no recinto. Me levanto cambaleando, tentando ocultar a dor aguda que vinha das minhas queimaduras.

-Eu quero ver o Heitor!- exclamo irritado, não sabia a quem direcionava minha frustração, porque no fim das contas suas objeções e tentativas de me segurar não faziam sentido, não era óbvio o porquê de eu estar ali?

-Deixe ele em paz, meu menino já sofreu demais...- as voz de Cassandra se torna embargada enquanto ela fala, mas em uma pausa seu tom sobe.- por sua causa, ele estaria melhor se nunca tivesse te conhecido.

Sua acusação não é justa, Heitor me mostrara sua vida antes de nos conhecermos, havia visto-o definhar até se tornar alguém sem esperanças ou perspectivas.

-Sem mim ele ainda seria um garoto triste com um curativo na bochecha.- rebato cerrando os punhos, minha frase faz com que as lágrimas rolem pelo seu rosto, porém a mulher não está disposta a ceder, vejo suas sobrancelhas se fecharem, voltando a posição de ataque.

-Pelo menos ele não queria que fugir e se esconder, você é como a sua família, uma desgraça. -diz por entre os dentes, ela se aproxima da porta.- Você deu pro meu filho a esperança de ser um menino normal e agora ele perdeu isso, o que acha pior, nunca conhecer a felicidade ou conhecer e perder tudo logo em seguida.

-Ele ainda pode ser feliz, deixe as coisas se acalmarem um pouco e podemos pensar em algo.- replico insistindo, aquela era uma discussão que não podia perder.- Eu não vou embora enquanto não vê-lo.

Estou prestes a gritar por seu nome, chamaria por ele até que o garoto aparecesse, porém nesse momento Cassandra me interrompe.

-Ele não está mais aqui, foi embora já fazem alguns dias com Abel, nosso advogado, estou aqui ainda apenas pra empacotar o restante das nossas coisas antes de partir também.- diz pesarosa, suas palavras me assustam, desde o início dizia para mim mesmo que estaria feliz com Heitor longe daqui e à salvo, porém ouvir aquilo era muito mais doloroso.- Se ele quisesse te contatar já teria feito isso por telefone, por que não entende de uma vez? Acabou.

-Mas... Mas...- tento argumentar mas é inútil, me sentia imprestável com o peso que havia em meu estômago.

-Por favor, vá embora.- diz Cassandra abrindo a porta novamente. Meus olhos se enchem de pesadas e dolorosas lágrimas enquanto caminho na direção da saída, porém quando estou prestes a sair ouço outra voz surgir, vinda dos andares mas altos de casa.

-Mãe? Está tudo bem?- pergunta, aquela não era a voz costumeira dele, parecia um tom ou dois mais grave, mas definitivamente era ele. Meus olhos cruzam com o olhar mortificado de Cassandra. De imediato me viro voltando para dentro da casa enquanto grito por seu nome, atrás de mim Cassandra segue tentando me impedir.

Subo as escadas desfrutando um alívio controverso, por mais egoísta que fosse, queria tanto ele ali, perto de mim. Segundos antes de alcançam o último andar ouço a porta de seu quarto batendo com força. Alcanço-a e em seguida giro a maçaneta num movimento débil, era óbvio que ela não estaria aberta, tento empurrá-la, mas uma força imensamente maior a segura.

-Heitor?- pergunto, num misto de preocupação e choque. Aquilo não fazia sentido, por que o garoto fugia de mim? Não havia feito nada de mal a ele. Nesse momento uma ideia horrível me passa pela cabeça, minha família poucos dias atrás havia matado um garoto gay no incêndio de uma biblioteca, será que Heitor pensava que fazia parte disso e havia atraído ele até lá? Uma frase estrangulada foge antes que eu me dê conta -Eu estou com saudades.

-Eu... Eu... Vá embora.- pede com a voz embargada, sinto o frio percorrer minha espinha, estava sendo expulso de sua vida sem explicações, apenas cortado. Tento argumentar mas as palavras ficam presas em minha garganta e dali sobem até meus olhos se transformando em água que inundava minha visão, seco as lágrimas antes de dar as costas para a porta.

-Tudo bem, se é isso que você realmente quer.- digo, estava derrotado, queria sair dali e me esconder em algum canto aonde pudesse chorar as minhas mágoas, dou um passo na direção do fracasso e então paro, em minha mente vejo uma espiral se formar, aquilo não era justo comigo e muito menos era justo com ele, não iria fugir sem lutar, ouço o voz em meus sonhos fazer uma acusação, cuspindo a verdade na minha cara.

"Se o amasse estaria com ele agora..."

E cá estava eu, dando as costas para sua porta... Não! Eu sabia o que queria e iria até o fim. Determinado corro até a porta e empurro-a forçando minha entrada, a abertura cede e estou no quarto de Heitor.

Naquele instante ponho os olhos em Heitor e tudo faz sentido.

Heitor tem grandes olhos escuros, cheios de medo e vergonha, o tremor de seu corpo era visível e denunciava tudo pelo que vinha passando. Ali estava o retrato de tudo o que mais temia, a dor de finalmente encarar sua verdadeira aparência e o pavor de não ter mais a capacidade de se esconder

Diante de mim havia um massivo demônio de pele avermelhada, devia ter por volta de dois metros e meio, entre seus cabelos se projetavam chifres que acompanhavam a forma de sua cabeça, às suas costas um rabo comprido pendia, orelhas antes arredondadas ganhavam um formato pontudo. Tantas mudanças e nenhuma delas importava, tudo o que via à minha frente era Heitor e isso bastava, sem exitar corro para abraçá-lo.

O demônio é pego de surpresa com o movimento e permanece imóvel por longos instantes, perplexo, até finalmente mover seus massivos braços para me envolver e ali finalmente se permite o direito de desabar.

Meu Demônio (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora