Os últimos dois dias no hospital foram provavelmente os piores, a presença de minha mãe já não era mais bem-vinda, sentia-me traído, nenhuma pessoa conhecida parecia ser confiável o bastante, qualquer momento parecia oportuno para atacar com a faca do almoço e perguntar como haviam tido coragem de matar Bernardo. Felizmente o único sentimento mais forte que o ódio era a frieza, meus pais não haviam sido os únicos envolvidos e precisava me vingar do máximo de pessoas possíveis antes de ser pego.
Na tarde do sétimo dia meu pai aparece, o homem tinha uma expressão séria e inflexível, sem muitas palavras ele anuncia que é hora de irmos para casa. Deixo o quarto cumprimentando os médicos e a equipe de enfermagem com acenos de cabeça, até mesmo aqueles que me seguraram em meu ataque de raiva contra Dolores.
A viagem é dolorosamente silenciosa, mesmo tendo muito a se ouvir, a quietude de ambos mostra que algo está errado, o filho de um casal sobrevive milagrosamente a um incêndio "acidental" e não há nenhum sentimento de gratidão ou benção, apenas silêncio, um silêncio culpado de quem sabe o que fez e quase acidentalmente matara o próprio filho, talvez esse fosse o único acidente em toda essa história.
Minha mãe poderia não saber do plano completo desde o início, por ter me deixado ir à biblioteca, mas agora era óbvio que estava tão ciente quanto todos os outros.
Como os prédios são próximos, passamos em frente à biblioteca para chegarmos à casa pastoral, nas cinzas e escombros do antigo prédio, há antigas prateleiras de ferro dispostas diante da tragédia, retorcidas e irreparáveis, não era visível do meu ponto de vista, mas nos fundos do prédio havia uma saída de emergência que levava à um pátio externo, ali bombeiros haviam encontrado meu corpo inconsciente e jogado a esmo, sem qualquer explicação lógica, era simplesmente impossível que tivesse saído do clube do livro para chegar ao meu local de encontro.
Quando a polícia viera me visitar no hospital pensei na hipótese de acabar sendo incriminado, um jovem rebelde e incendiário, de qualquer forma a ideia nunca fôra levantada, provavelmente por também fazerem parte do plano e não haver necessidade de um culpado, prédios velhos e cheios de papel eram altamente inflamáveis, aquele era um caso livre de quaisquer suspeitas.
Um plano de quem? Meu pai? Não achava que um pastor de cidade pequena fosse tão relevante, afinal, aquele não era o primeiro caso, havia também o ataque à parada gay de São Paulo. Damares tão pouco parecia uma opção válida, organizar movimentos, atrair seguidores, essas eram coisas que cabiam a pessoas capazes de cativar, a missionária era o completo oposto disso, tudo nela causava repulsa.
Ao chegarmos, abro a porta do carro antes que alguém tente, minhas mãos enfaixadas ainda doíam mas não queria depender de ninguém ali. Sem rodeios ou interações subo as escadas e tranco a porta atrás de mim. Queria gritar, quebrar alguma coisa, denunciar tudo aquilo, mas sabia que seria em vão, ninguém acreditaria numa teoria sem provas, mesmo que houvessem algumas felizes coincidências, sinto meu espírito se contorcer em agonia dentro de mim.
Sentia a loucura de ser o único a conhecer uma dolorosa verdade, estava cercado de assassinos, criminosos, os quais matavam pessoas como eu e fariam o mesmo comigo se soubessem o que realmente sou. Estava prestes a explodir quando uma flechada de realidade me acerta, fazendo com que tudo se acalme diante da saborosa realidade: Heitor estava a salvo, naquele momento o garoto deveria estar longe dali, há quilômetros provavelmente, em que direção haviam partido? Não sabia e não importava, a dor de não receber ao menos uma mensagem de "Adeus" era completamente vencida pela alegria de tê-lo a salvo, inacessível ao mal que me rodeava. Talvez nos encontrássemos num futuro distante, quem sabe? Mas aquilo não passava de um delírio esperançoso, um mero detalhe.
Os dois dias seguintes se passam em um jogo de caça aos ratos, minha família buscava por mim, vez ou outra batiam na porta chamando para refeições ou oferecendo ajuda com o cuidado dos ferimentos, todos os chamados eram ignorados, me habituara a sair na calada da noite para comer qualquer coisa que fosse de fácil acesso na cozinha, geralmente frutas ou castanhas, como praxe passara a chamar por Abigail depois do meio-dia, uma última garantia de que Heitor não apareceria e havia partido, ao que parecia tudo corria bem, o amor da minha vida se fôra e não poderia estar mais feliz com tal notícia.
Naquela noite decido fazer o inevitável, nas pontas dos pés caminho até o banheiro e lentamente encosto a porta, trancando-a com cuidado. Receoso começo a desenrolar os curativos e bandagens em meus braços até finalmente revelar uma pele avermelhada e frágil, a superfície ainda se mantinha úmida devido às pomadas utilizadas no hospital. Cuidadosamente ligo o chuveiro na temperatura mínima e deixo a água correr sobre as partes feridas, alguns minutos se passam até reunir coragem suficiente de entrar de cabeça na água, a temperatura fluindo por meu corpo fazia meu queixo bater, queria resmungar e mandar o frio embora, mas aguento firme até o final. Com a toalha seco os braços, receoso com a ideia de ferí-los novamente.
Sigo na direção do armário no banheiro, buscando por qualquer tipo de pomada que pudesse substituir aquela removida pela água, não encontro nada além de algumas ataduras brancas, pego-as, fechando a portinhola em seguida, nesse momento percebo a face de um homem magro e de olhos cruéis que me encarava, aquele era meu reflexo no espelho, tinha cabelos revoltos e barba rala e irregular brotando pelo rosto. Ver aquela fugira era uma tarefa difícil, quando havia me tornado tão digno de pena e medo ao mesmo tempo?
Finalmente decido que é hora de deixar o banheiro, novamente nas pontas dos pés volto para o meu quarto, segurando dois rolos de ataduras, ali amarro precariamente as faixas de tecido branco ao redor dos meus braços, não faço um bom trabalho, mas aquilo era tudo o que conseguiria fazer sem ajuda. Por fim deito na cama, em completa escuridão adormeço.
*****
Mais uma vez estou na biblioteca, as chamas consomem o lugar e tudo é fogo, fumaça e fuligem escurecem o recinto, o calor avança mas não me queima, permaneço imóvel em meio à destruição, nesse momento uma voz retumbante surge no corredor, preenchendo tudo.
"Você está a salvo, quem pagou o preço foi ele. Isso te parece justo? Quando se perde tudo é sempre assim, ninguém aparece para estender a mão, você é igual a todos os outros?" A voz provoca, seu tom é sarcástico e cheio de curiosidade, tento responder mas é em vão, a voz torna a falar.
"As pessoas nunca estão dispostas a pagar o preço... E você é como todos os outros. Oh não, você ama ele, ou diz que ama. Se o amasse estaria com ele agora. Vamos lá, ele pagou o preço por você, e você, pagaria o preço por ele?"
*****
Nesse momento acordo sobressaltado com o toque do telefone, meu primeiro instinto é fugir do fogo até finalmente diferenciar sonho de realidade, nesse momento apanho o aparelho para encontrar uma ligação de Abigail, era cedo, deviam ser seis e meia da manhã, o motivo da ligação faz meu coração bater mais rápido.
-Oi.- digo com a voz trêmula, ao fundo na ligação ouço o som de diversos adolescentes em pequenas conversas aleatórias.
-Oi Gabriel, eu sei que não é bem o que me pediu, mas acho que isso pode te interessar, acho que acabei de ver a mãe do Heitor subindo o morro da escola em direção ao condomínio, acho que eles ainda estão por aqui.
Por um instante fico mudo, assustado com a notícia, um sentimento de urgência parece tomar conta de mim, de forma que mal consigo finalizar a ligação, agradecendo bruscamente Abigail.
Me levanto e corro na direção do armário, apanhando qualquer roupa que aparece pela frente, desajeitamente visto um casaco e destranco a porta. Precisava chagar até Heitor.
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Meu Demônio (Romance Gay)
RomanceGabriel prometeu a si mesmo nunca se apaixonar, o que as pessoas diriam se descobrissem que o filho do pastor é gay? Apenas a idéia de prejudicar seu pai o fazia estremecer. O tímido rapaz passa seus dias focado, deixando sua vida de lado enquanto...