Culpa
Culpa
CulpaEsse vinha sendo o sentimento desde que havia acordado dois dias atrás, no hospital todos os médicos diziam que ficaria bem, falavam o quanto fôra sortudo encontrando a saída nos fundos da biblioteca antes de receber outros dados além de algumas queimaduras leves nos braços, não falava desde que acordara, gritando por ajuda, por socorro, por Heitor. Havia sido aconselhado a não tentar de qualquer maneira, minhas cordas vocais haviam sido prejudicadas pela fumaça inalada.
Me sentia fraco e zonzo, parte disso se devia aos medicamentos que pingavam vertiginosamente nos soro ligado ao meu braço, a dor que deveria estar ali se mantinha distante, nebulosa. No decorrer de dois dias sigo imóvel, curativos eram trocados, pomadas eram passadas e aos poucos as gotas de soro caem mais e mais lentamente, fazendo com que recupere a consciência e a razão.
Como na maior parte do tempo, minha mãe se encontra deitada em um sofá próximo à cama hospitalar, cochilando. Encaro-a com desprezo, desejando gritar horrores que quebrariam seu coração sem o menor remorso. Juntar as peças do ocorrido me deixavam mais e mais enojado. As palavras ditas nos últimos dias a mim se acumulavam, destilando-se como veneno, mas tudo começou com ela.
-Se eu soubesse o que ia acontecer, não teria te deixado ir até lá.- dissera ela, uma confissão silenciosa daquela que menos esperava.
"Se eu soubesse o que ia acontecer..." Não há como saber quando algo assim aconteceria, há? A verdade é que sim, é fácil saber quando um prédio pegará fogo quando se coloca fogo nele. Apenas uma pessoa havia morrido naquele trágico "acidente", Bernardo, o garoto que coincidentemente havia desafiado pessoas da igreja três dias antes, o garoto que ousara ir contra meu pai, contra Damares...
Me sentia conhecendo uma horrível verdade sem poder dizê-la a ninguém, no meu terceiro dia internado havia recebido a visita de investigadores da polícia, os quais afirmavam ter concluído que tudo não passara de um horrível acidente, tudo o que pude fazer foi encarar com um nó em minha garganta. Tudo fôra rápido demais, conveniente demais, eles tinham um inimigo e ele havia sido neutralizado, o pastor nem ao menos dava as caras no hospital, provavelmente sentindo o remorso de quem quase matara outra pessoa por engano, talvez não fosse um problema para ele se não fosse seu filho, pensar era doloroso e assustador, não conseguia confiar em nenhuma das pessoas ao meu redor. Sentia que, pela primeira vez havia visto a verdadeira face dos meus pais, ambos dispostos a encerrar vidas inocentes por seus interesses.
Bernardo estava morto, havia feito as pazes com ele minutos antes das chamas consumirem seu corpo e tirarem sua vida, o sonho de dias atrás ecoava em minha mente mais uma vez, "De quem é a culpa?", o culpado pela morte do garoto era eu, graças a mim ele conhecera Damares e o pastor, sentia como se tivesse entregado a caneta para que ele assinasse sua sentença de morte.
Quem mais estaria por dentro desse plano? Quantos mais estavam dispostos a a ocultar aquele crime por capricho, confiar em qualquer pessoa que fosse parecia impossível. No quinto dia, por mim minha mãe cede ao cansaço e se vai, no lugar dela surge a figura horrenda de Damares, a qual se senta no sofá com uma bíblia a tiracolo, pelo canto do olho vejo seu rosto buscando contato visual, me forço a encarar o teto fixamente. Depois de algumas horas ela desiste de sua busca e salta para uma conversa ser convite.
-Acho que agora você entende, sabe?- começa ela, com ar de autoridade e presunção, meus olhos deslizam até seu rosto desfigurado, fuzilando-a sem dizer nada, porém a criatura continua.- Pois é, também já fui queimada, é uma experiência horrível que eu não merecia passar, acho que somos iguais em algo afinal.
Iguais? Não éramos iguais, nunca uma acusação tão absurda havia sido feita, tento me conter mas e inútil, salto para fora da cama na direção de Damares arrancando tubos do meu braço, a mulher se levanta sobressaltada e foge na direção do corredor, tento alcançá-la mas sou apanhado por uma dupla de enfermeiros, grito as maiores atrocidades enquanto me arrastam quarto adentro. Ali passam uma cinta ao redor da minha cintura garantindo que aquilo não se repita, algo inútil tendo em vista que Damares não volta.
Permaneço ali, sozinho, imóvel até o começo da noite, quando o horário de visitas chega sou surpreendido com duas batidinhas na porta, tento me levantar em sobressalto, sem sucesso, para encontrar Abigail na entrada, a qual tenta esboçar um sorriso sem sucesso.
-Oi.- saúda entrando no recinto para tomar um lugar na base da cama, apenas assisto sua movimentação, incapaz de reagir, seus olhos estavam inchados e cheios de dor, uma dor que meio sorriso jamais esconderia, ali me forço a falar, o que estava sendo ruim para mim provavelmente seria muito pior pra ela, Abigail conhecia Bernardo verdadeiramente, era sua amiga fiel, acabo tossindo antes de dizer qualquer coisa, ao verbalizar minha voz sai rouca e áspera.
-Oi.- tento sintonizar o volume e a intensidade em minha garganta, a qual parecia extremamente seca. -Como você...
Antes que possa terminar a pergunta lágrimas começam a escorrer pelo rosto da menina, como podia ser tão idiota? Que tinha de pergunta era essa? "Como você está?", era claro que Abigail está mal, havia passado por algo inimaginável, não sabia de onde tirara forças para aquela visita.
-Eu fico feliz que tenha sobrevivido ao acidente, não suportaria perder meus dois melhores amigos de uma só vez.- lamenta, tentando controlar os soluços.
Acidente... As pessoas acreditavam mesmo que tudo não passara de uma fatalidade. Meus olhos se cerram enquanto volto a minha habitual mudez, com isso a garota torna a falar.
-Há dois dias atrás aconteceu o funeral dele, o pior de tudo foi que...- a mulher se interrompe por alguns instantes, tentando reunir forças.- Não haviam pessoas suficientes lá, pessoas que gostassem dele, que lamentassem sua morte.
Imagino a cena, um cemitério quase vazio, sem cortejo, sem despedida, apenas Abigail, pouquíssimos conhecidos e talvez alguns curiosos, tudo aquilo fazia minha raiva transbordar, quando dou por mim estou segurando o pulso de Abigail, com força, minha pele em recuperação era frágil e o aperto me machucava tanto quanto a ela.
-Gabriel?! O que está fazendo?- pergunta alarmada, era uma pergunta estranha, afinal nem ao menos eu sabia a resposta, porém as palavras fogem da minha boca.
-Eu vou me vingar deles, de todos eles!- vocifero em selvageria e loucura, os olhos de Abigail me encaram confusos enquanto tenta se soltar do meu aperto.
-Gabriel, por favor!- suplica ela, até que finalmente volto ao foco e lhe deixo escapar. Com aquilo Abigail se afasta da cama, indo até o sofá, aonde se senta em silêncio, permanecemos em semelhante quietude enquanto encaro o teto, frustrado pela incapacidade de me controlar, por fim tomo coragem para fraquejar e perguntar o que internamente me corroía.
-Por que o Heitor não veio me visitar?- indago sentindo as lágrimas chegarem aos meus olhos, aquela dúvida tomava grande parte do meu tempo e talvez o maior medo fosse saber a resposta. Um longo silêncio se estende no quarto até que a garota finalmente responda.
-Eu... Eu não sei, Gabriel. Não vejo o desde o dia do incêndio, ele não foi ao funeral do Bernardo, pensei que você soubesse de algo, ou que... Bem, tivesse recebido alguma visita.
Balanço a cabeça em negativa, enquanto levanto um dos braços para secar as lágrimas nos curativos. Daquele momento em diante me torno inalcançável, perdido e assombrado por meus próprios pensamentos, ao fim do horário de visitações Abigail parte e volto à solidão.
Cassandra sempre estivera certa, ficar era perigoso para Heitor, e o que acontecera com Bernardo não demoraria para acontecer a ele se continuasse aqui, o melhor para o garoto era partir enquanto era tempo. Preferia morrer sozinho ao invés de condenar o homem que amava e sabia que não parariam com o incêndio da biblioteca, não haviam mais dúvidas de que meus pais e Damares tinham alguma relação com o que acontecera na parada gay de São Paulo, os dois incidentes não passavam do mesmo ataque em proporções diferentes.
Culpa...
A culpa não era minha afinal, não era eu o assassino de Bernardo, não passava de uma ligação perigosa e infeliz em sua vida curta e trágica, a culpa era daqueles que haviam começado o fogo, puxado o gatilho. Meus pais, a missionária e sabe-se lá mais quantos estariam por trás disso tudo, a culpa era deles.
Deixar o sentimento de culpa partir não tornava as coisas mais fáceis ou menos dolorosas, com Heitor possivelmente longe e a salvo, todo o espaço que sobrava dentro de mim era preenchido por um único desejo...
Vingança.
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Meu Demônio (Romance Gay)
Lãng mạnGabriel prometeu a si mesmo nunca se apaixonar, o que as pessoas diriam se descobrissem que o filho do pastor é gay? Apenas a idéia de prejudicar seu pai o fazia estremecer. O tímido rapaz passa seus dias focado, deixando sua vida de lado enquanto...