Quatrocentos e quarenta e sete mortos, no fim da tarde era esse o número oficial de baixas causadas pelo atentado terrorista em São Paulo, ainda haviam chances desse número aumentar devido aos feridos que estavam em estado grave nos hospitais, as notícias frisavam a barbárie e o caos que tomara conta da cidade, não havia infraestrutura para todo aquele dano.
A imprensa ainda se questionava quanto a autoria daquele atentado e sem um culpado restava apenas apontar para todas as direções possíveis, grupos extremistas, terroristas vinculados ao oriente médio, um golpe ultra conservador, as hipóteses eram muitas.
Por fim Heitor me arranca do ciclo repetitivo de más notícias se colocando entre mim e a televisão.
-Vamos tomar um banho.- diz me estendendo a mão, por um instante me recuso, estava mergulhado em um estado de tristeza que me arrastava pra baixo, era difícil desviar os olhos da tela, um sentimento instintivo do ser humano, o mesmo que as pessoas experienciavam ao parar em um acidente de carro, o mórbido fascínio do que não devia ser visto.
Tudo se tornava ainda pior quando se parava pra pensar que poderíamos ser nós ali, Heitor e eu aproveitando um dia na rua, pensando estarmos seguros, livres, com tudo indo pelos ares num piscar de olhos. Sem resposta Heitor volta a me chamar.
-Vamos lá, amanhã temos aula, você precisa ir pra casa, seus materiais estão lá e não sei quando seus pais estarão de volta, você não vai querer ser pego por eles dormindo aqui sem explicações, né?
As obrigações me trazem de volta ao foco, deixo o sofá e seguimos para o banheiro no terceiro andar, o banho foi silencioso e sem grandes investidas de Heitor, que além de estar abalado também respeitava meu pesar.
Dali vamos até seu quarto, nos vestimos e por fim me volto a mochila, organizando tudo o que havia trazido.
-Você quer jantar antes de ir pra casa?- pergunta o garoto, em sua voz havia preocupação, balanço a cabeça em negação.
-Não, eu estou sem fome, acho que preciso dormir um pouco. Amanhã vou estar melhor.- digo me levantando enquanto tento esboçar um sorriso desanimado.
-Está bem.- diz Heitor, insatisfeito com a negativa, como isso seguimos casa abaixo até a porta, ali quando penso estar prestes a seguir sozinho vejo-o gritar para algo na direção da cozinha.- Mãe, vou levar o Gabriel em casa.
-Está bem, tenham cuidado.- grita ela de volta.
-O bom e velho costume dos italianos de se comunicarem gritando.- diz ele esboçando um sorriso contagiante, o qual me faz sorrir de volta.- Vamos lá?
As ruas do condomínio de Heitor eram mal iluminadas, havia apenas um poste aqui ou ali das casas próprias casas, de qualquer forma o caminho morro abaixo era simples e ainda assim tínhamos a luz da lua cheia. As cigarras faziam um som contínuo e achatado que ecoava floresta afora. Estávamos prestes a virar a última curva antes do portal quando Heitor toma fôlego.
-Eu sei que você está criando coragem pra se assumir pros seus pais, e sei eu prometi que teria um lugar na minha casa se as coisas dessem errado, mas...- À luz da lua vejo o garoto mordendo o lábio, atendo-se, parecia temer algo.
-Mas...?- indago, talvez ele tivesse tanto medo da reação do pastor quanto eu.
-Acho que devemos esperar antes de falar qualquer coisa sobre isso. Não é a hora certa pra esse tipo de coisa.- finaliza, por um momento tenho a impressão de que não eram essas as palavras que ele realmente queria usar.
-Conhecendo meu pai, acho que nunca será a hora certa pra ele.- afirmo frustrado.
-Gabriel, isso é sério! Desculpe, eu...- o garoto parece se embolar nas palavras.- Eu não estou me referindo só ao seu pai, depois de hoje não sei como as coisas vão ficar, tem muito ódio lá fora e as pessoas podem entender o que aconteceu em São Paulo como uma carta branca pra fazer o mesmo.
-O meu...- começo, mas logo paro, "O meu pai não faria isso!" Não faria? Até onde o pastor, que cuspia aos quatro ventos venenos contra gays e pessoas da vida poderia ir se achasse que tinha aval ou razão? A ideia me faz estremecer.- Você está certo.
Em um movimento de aprovação Heitor segura minha mão, entrelaçando nossos dedos e assim ficamos até o fim da ladeira.
-Você não precisa ficar triste, ainda vamos nos ver e aproveitar tudo como sempre fizemos, só vão atrasar o inevitável. Quando a poeira abaixar vamos contar tudo, e lembre-se que ainda posso usar meus poderes nele se preciso for.- diz tentando ser mais casual e menos tenso do que realmente estava, a verdade era que Heitor não gostava de usar seus poderes deliberadamente contra as pessoas.
Quando a rua deixar de ser deserta o homem solta minha mão, algo que ele parece tentar se desculpar com um olhar sem jeito.
-Te amo.- sussurro em sinal de estava tudo bem, entendia as circunstâncias.
Dali seguimos alguns minutos em silêncio, algo que não era bom para mim, o vazio me dava tempo pra pensar e pensar me trazia um sentimento que crescia: raiva.
Queria que os culpados daquele ataque fossem punidos, queria que o meu pai enfiasse aquele maldito seminário no cu, no fundo todos naquele encontro idiota deviam ser como ele e estariam até felizes com todas as mortes.
Passamos por um Tio Torra vazio e triste, muitos lugares pela cidade compartilhavam desse mesmo sentimento, a dor mediante a tragédia, havia é claro, um bar ou outro que trovejava sorrisos como se nada houvesse acontecido. Por fim chegamos a minha casa, aonde após olhar para os dois lados Heitor entra.
Ali o homem finalmente se sente livre para me beijar, um beijo terno e amoroso, sem qualquer desejo ou volúpia. Aquela era a hora de me despedir, agradecer pela companhia até meu destino, subir e deitar na cama, aonde finalmente choraria as dores do que havia visto.
Aquela ideia me assombrava, antes que possa me controlar as palavras fogem.
-Durma comigo, por favor.- peço, quase em tom de súplica.
-Eu...- Heitor tenta retrucar o pedido mas logo se atém, suspirando.- Tudo bem. Mas precisamos acordar cedo.
Me sentindo grato e culpado assinto, sabia que havia pedido mais do que devia, o garoto então liga para sua mãe avisando sobre a mudança de planos.
Alguns minutos depois estamos em minha cama de solteiro, em uma conchinha apertada aonde adormeço.
*****
NOTA DO AUTOR
Vocês estão preparados? Personagem novo vem aí...
🙄
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Meu Demônio (Romance Gay)
RomanceGabriel prometeu a si mesmo nunca se apaixonar, o que as pessoas diriam se descobrissem que o filho do pastor é gay? Apenas a idéia de prejudicar seu pai o fazia estremecer. O tímido rapaz passa seus dias focado, deixando sua vida de lado enquanto...