O brilho amarelado da bebida chama a minha atenção enquanto a giro lentamente antes de leva-la a boca. O gosto amargo e forte descia goela abaixo, a sensação queimando é gostosa, talvez a melhor coisa que eu já tenha bebido em toda a minha vida miserável.
Deixo o copo de whisky próximo a garrafa e apoio meu corpo para trás pelos cotovelos e deito minha cabeça, deixando meu rosto para cima para poder sentir os últimos raios de sol.
Queria poder sumir, mas isso implicaria em eu me dando muito mais mal do que o habitual.
Encaro a tonalidade alaranjado e índigo no céu, já conseguia ver pouco das estrelas e a lua. O barulho dos carros e das crianças na rua me deixa meio melancólica, deprimida, tudo parece tão estranho.
— Kiara!
A voz grossa de meu pai me assusta, fazendo com que perca a força dos cotovelos e deite de vez no telhado da casa.
— Que saco — resmungo baixinho, ficando de joelhos.
Arrasto meu corpo até a janela do meu quarto e entro no mesmo, em passos largos, caminho até o banheiro e escovo os dentes.
— Você não vai perder a paciência hoje, Kiara. Você. Não. Vai. Perder. A. Paciência — repito para mim mesma, encarando meu rosto cansado no espelho do banheiro.
Quando chego na sala, observo meu pai desafrouxar a gravata enquanto conversa no telefone. Ele está contente como se tivesse ganhado na loteria.
— Ah, ela vai adorar as novidades! Estou muito orgulhoso dela.
Franzi o cenho. Do que ele estava falando?
Me contenho, evitando chamá-lo, ele odeia quando o interrompo durante alguma ligação ou conversa, sempre tenho que espera-lo.
— Sim, claro. Obrigado, tchau.
— Pai?
— Kiara! — ele abre os braços e deixa o celular de lado, vindo até mim, que ainda estou parada próxima a escada.
— O que está acontecendo? — não sei do o que se trata, mas tenho uma péssima intuição sobre aquela ligação.
— Você passou.
— Passei? Em quê? — minha voz sai baixa, havia feito vários vestibulares, haviam sido tantas provas nos últimos meses. Estava perdida.
— Direito.
— Não.
— Sim! — ele me abraça, contente, como se tivesse soltando fogos de artifício.
De todas as provas, de todos os cursos, direito era o meu pesadelo. Não queria aquilo, mas meu pai insistiu. Me encheu o saco, fez um inferno até que eu fizesse aquele maldito vestibular.
— Eu não vou — repito firme, tirando os braços dele de mim.
— Kiara. É a sua chance.
— Não quero isso, você sempre soube — de costas, ponho meu pé no primeiro degrau da escada.
— Não seja tola.
— Você não vai me obrigar a entrar nisso.
— É o melhor para você.
— Não. Não. Não — grito, dando-lhe as costas e corro, subindo os outros degraus até meu quarto.
Sabia que esse dia maldito não teria um fim decente. O inferno só continua em minha vida.
— Kiara, volte aqui! — a voz do meu pai me segue.
Bato com força a porta do quarto e caminho até a janela.
Com dificuldade, consigo pular e volto para o lugar de onde eu não deveria ter saído, ao lado do meu whisky.
Sabia que estava assinando um contrato com o diabo quando resolvi ceder as vontades de meu pai, ele sempre conseguia o que queria, mas não dessa vez.
Onde que eu conseguiria ser uma advogada, juíza ou até desembargadora? Ele sempre falava a mesma coisa.
— Sabe que odeio quando fica aí — meu pai comenta colocando o rosto para fora da janela e me encarando.
O sol já sumiu, levando consigo os tons rosas, alaranjados e índigo, deixando apenas o escuro e a luz da lua junto com estrelas e postes.
— Isso é whisky?
— Uh, como adivinhou — comento com ironia, irritada. Já não me importo mais que ele me veja bebendo.
— Desde quando bebe?
Já fazia dois anos. Desde o primeiro gole não consegui mais largar, me pergunto como aguentei tanto tempo sem experimentar uma gota sequer de álcool. Mas antes era diferente.
— Kiara, não aja feito criancinha — ele reclama.
O ignoro, juntando as pernas e apoiando minha cabeça nos joelhos. Ele não viria até mim, nunca o fez, não seria diferente nesse momento.
— A sua mãe, ela...
— Não, não venha me falar dela — o interrompo, sabia que estava demorando, ele sempre usa o nome dela para me manipular.
"Era o sonho da sua mãe."
— Não era o sonho dela, não minta pra mim — minha voz trava, minha garganta está dando um nó.
— Fadinha...
Fecho os olhos com firmeza, tentando impedir que as lágrimas saíssem dos meus olhos.
— Conversamos disso depois. Não beba mais, isso vai te prejudicar.
Não falei nada, esperando que ele saísse o mais rápido possível.
— Amo você — então pude ouvir seus passos ficando distantes, e por fim a porta se fechando.
Não aguento. As lágrimas já estão embaçado meus olhos o suficiente. Ao mesmo tempo que parece que meu pai me salvaria do caos, ele mesmo me coloca lá.
Nos perdemos um do outro desde que minha mãe morreu. É tão injusto, não há mais ninguém que eu confie do que ele, e de repente, ele é a última pessoa que eu posso confiar.
Limpo meu olhos com a barra da blusa e encaro o restante do whisky na garrafa, pego a mesma e bebo de uma vez, sinto minha garganta queimar.
Queria que meu corpo inteiro queimasse junto.
Estava decidida, nem que eu tivesse que ir embora, eu não faria a faculdade que meu pai desejasse.
Foto: Reprodução/ We Heart It.
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A Força Do Querer
RomanceTudo estava sobre controle na vida de Kiara, ela tinha o apoio para fazer o que desejasse, sentia que a família era seu tudo, confiava nos pais. Era feliz, era ela. Sem vícios, sem amargura, sem medos e desconfiança. Patrick nem sempre pôde confiar...