Negro DRAMA

Que Sobrevivem em Meio às Honras e Covardias

O caminho de volta para casa nunca foi simples. Cada viela tinha sua história, cada canto abrigava lembranças que às vezes eram impossíveis de apagar. E naquela noite, com Richard desaparecido e a escuridão cobrindo a favela, eu sentia o peso dessas histórias nas minhas costas.

Enquanto andava pelas ruas mal iluminadas, via as pessoas que, assim como eu, sobreviveram até aquele momento. Não éramos heróis, mas também não éramos covardes. A linha que separava as duas coisas era tênue aqui. A honra, na favela, nem sempre era uma escolha nobre, e a covardia podia significar a diferença entre viver mais um dia ou ser tragado pela violência.

Na esquina, um grupo de rapazes jogava dominó, cercados por risadas altas e brincadeiras. Mas eu sabia o que estava por trás daquelas risadas. Sabia que, em qualquer outro momento, um deles podia desaparecer como Richard. Eles riam hoje porque, de alguma forma, ainda estavam ali. Cada dia era uma batalha vencida, uma resistência silenciosa contra o destino que o sistema nos impunha.

Atrás de mim, passos apressados. Meu corpo enrijeceu, a desconfiança natural de quem vive cercado pela incerteza. O medo sempre vinha acompanhado de sombras, de vozes sussurradas. O medo aqui não era de monstros ou do escuro, mas dos próprios homens, que podiam ser cruéis ou simplesmente desesperados.

Um rosto conhecido passou ao meu lado: Guilherme, o "Don Juan" da favela. Sempre com aquele sorriso de canto de boca, olhos que escondiam muito mais do que ele deixava transparecer. Guilherme era o tipo de cara que tinha uma aura de invencibilidade, mas todos sabiam que até os mais confiantes sentiam o peso do lugar.

“Tá sabendo do Richard?” — perguntei, tentando soar casual, mas minha voz entregou a urgência.

Guilherme balançou a cabeça, sem perder o sorriso, mas seus olhos perderam um pouco do brilho. Ele se aproximou e falou baixo, como se o ar ao nosso redor fosse uma ameaça:

“Esse mundo aqui... você sabe como é. Uns somem, outros aparecem. A vida continua.”

Eu odiava essa resposta. A aceitação passiva da nossa própria extinção. Mas ele estava certo. Na favela, ser esquecido era quase um destino certo. As vidas, as memórias, tudo se tornava poeira ao vento. Só restavam os fortes, ou os que sabiam navegar entre a honra e a covardia, sabendo quando se curvar e quando se erguer. Guilherme era assim — sabia até onde podia ir, conhecia as fronteiras invisíveis que definiam quem sobrevivia e quem se perdia.

Passei pelo grupo de rapazes e continuei meu caminho. Ao longe, as luzes da cidade brilhavam, sempre tão distantes, uma promessa de algo maior que nunca nos alcançava. Mas era ali, na favela, no meio das ruas estreitas, que a verdadeira luta acontecia. Era onde os heróis sem nome se erguiam todos os dias, e onde os covardes também encontravam sua vez. O mundo nos colocava em categorias, mas aqui, a linha que separava honra e covardia era tão fina que, às vezes, nem mesmo nós sabíamos em qual lado estávamos.

A noite estava fria, o vento carregava o som de sirenes ao longe. Ouvia o choro de uma mãe, o barulho das crianças brincando, e de vez em quando, uma moto que passava em alta velocidade, anunciando que algo estava acontecendo.

Eu cheguei à porta de casa e olhei para o céu escuro. Não havia estrelas visíveis, apenas nuvens pesadas, ameaçando mais uma noite de tempestade.

Richard ainda não tinha voltado, e eu sabia que o silêncio não era bom sinal. Sabia que, no fundo, o destino de Richard podia estar selado. Mas, como todos ali, eu ainda carregava aquela pequena faísca de esperança. No fundo, a gente sempre esperava que, mesmo no meio da agonia, alguém pudesse voltar. Que alguém pudesse sobreviver em meio a tudo isso.

Entrei em casa, fechando a porta atrás de mim, me sentindo tão pequeno quanto aquela vela que eu havia segurado na última vigília. No fim das contas, o que nos restava era isso: a honra de continuar vivendo, de continuar lutando. Mesmo sabendo que o mundo ao nosso redor poderia nos engolir a qualquer momento.

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