Dinheiro

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O relógio marcava 5:30 da manhã, mas na quebrada não existe madrugada. O tempo se mistura entre as batidas do funk abafado que escapa das janelas e os sons da cidade grande que quase não chega até aqui. O céu mal começava a clarear e eu já estava acordado. Na verdade, acho que nunca durmo direito. Acordo com o coração batendo acelerado, como se cada noite fosse uma vigília, esperando o inevitável: mais um dia de luta.

Minha mãe, como sempre, já estava na cozinha. O cheiro do café aguado preenchia o ar. Eu sentia o peso dos dias nas costas dela, nos olhos cansados que mal se fechavam à noite. A vida dela era uma sequência de pequenos sacrifícios silenciosos, sem aplausos, sem reconhecimento. Era como se, desde que eu e meus irmãos nascemos, ela tivesse desistido de si mesma, vivendo só pra manter a gente vivo.

"Você viu a dona Marlene ontem?" perguntou ela, sem nem olhar pra mim, enquanto mexia o café. "Levaram o filho dela. Tá todo mundo falando que ele foi pego numa operação na favela vizinha. Mais um…"

Eu sabia o que ela queria dizer sem falar. "Mais um" era a nossa sina. Mais um garoto negro, mais um moleque da favela, mais um que o sistema tirava de nós. Aqui, a gente cresce sabendo que o futuro tem duas saídas: ou você se torna invisível, ou se torna estatística. E o filho da dona Marlene? Ele nunca teve chance.

Terminei o café e saí de casa sem dizer muita coisa. As palavras pesavam na garganta, porque eu sabia que minha mãe rezava todos os dias pra que eu não fosse o próximo "mais um". Mas no fundo, a gente sabe que não importa o quanto ela reze ou o quanto eu me esforce, o sistema não liga pra isso.

Na rua, a quebrada já estava acordada. Moleques jogando bola com uma latinha de refrigerante, os carros passando devagar pelas vielas, como se também estivessem carregando o peso da vida daqui. A padaria estava cheia, as senhoras comentando a última tragédia da semana, como se fosse uma novela. Mas a novela aqui é sempre de terror. O final? Nunca feliz.

Passei pelo ponto de ônibus onde alguns vizinhos esperavam. Gente de rosto fechado, segurando mochilas pesadas e sonhos mais pesados ainda. Gente que acorda antes do sol, trabalha até depois do pôr do sol e volta pra casa com o mesmo vazio no bolso e no peito. Ninguém fala muito. Aqui, o silêncio também é uma forma de proteção. Quem fala demais é notado, e ser notado na quebrada nem sempre é bom.

No caminho pra escola, vi o Lucas. Ele sempre andava com aquele boné azul desbotado, como se fosse um escudo contra o mundo. Ele era diferente de mim. Enquanto eu tentava ficar invisível, ele fazia questão de ser visto. Tinha um jeito de quem não aceitava as regras do jogo, como se acreditasse que poderia, de alguma forma, mudar as cartas que a vida nos deu. Eu admirava isso nele, mas ao mesmo tempo, sabia que o mundo não era tão simples.

"Cê vai hoje na quadra?" ele perguntou, com aquele sorriso de quem não tinha medo de nada.

"Não sei, mano. Tô cansado", respondi, mesmo sabendo que a quadra era um dos poucos lugares onde a gente se sentia livre. Era lá que, por um momento, o mundo esquecia de nos rotular, e a única coisa que importava era a bola no pé. Mas ultimamente, nem o futebol me trazia mais a mesma paz.

A escola era o mesmo caos de sempre. O portão velho, enferrujado, rangendo como se estivesse tão cansado quanto a gente. Os alunos se amontoavam no pátio, conversando, rindo, fingindo que estavam vivendo uma vida normal. Mas eu sabia que, por trás de cada riso, havia um medo silencioso. O medo de que, a qualquer momento, o próximo "mais um" poderia ser qualquer um de nós.

Entrei na sala e vi Davi sentado na última fileira, com os olhos perdidos na janela. Ele não falava muito ultimamente. Desde que perdeu o irmão para a violência do tráfico, ele se fechou num mundo próprio, como se tentasse se proteger de sentir qualquer coisa. Me sentei ao lado dele sem dizer nada. Às vezes, o silêncio é o único jeito de estar presente.

A professora entrou na sala, mas a voz dela era como um zumbido distante. Ela falava sobre o futuro, sobre o quanto o estudo poderia nos tirar dali, mas eu sabia que ela não acreditava naquelas palavras. Ela olhava pra gente com o mesmo olhar que a gente recebia de todo mundo: como se fôssemos casos perdidos. Como se, pra nós, o futuro já estivesse decidido antes mesmo de nascermos.

O som das sirenes voltou a invadir o ambiente, ecoando pelos corredores. Outro dia, outra operação. Olhei pro Davi, mas ele nem piscou. Estava acostumado. Todos nós estávamos. A aula seguiu, mas a gente só estava ali de corpo presente, porque nossa mente já estava nas ruas, na sobrevivência que nos esperava depois da última campainha.

Quando o sinal tocou, saímos em silêncio. O silêncio da escola era diferente do da rua. Aqui, era o silêncio do conformismo. Lá fora, era o silêncio da resistência. No caminho de volta, Lucas puxou assunto.

"Gabriel, cê já parou pra pensar em como as coisas podiam ser diferentes?" Ele falava com aquela intensidade que me fazia lembrar por que éramos amigos. Lucas sempre foi o sonhador, o cara que acreditava que dava pra virar o jogo. Eu queria ter essa fé que ele tinha, mas a realidade me pesava demais.

"Cê acha que dá, mano? Mudar alguma coisa?" Perguntei, mais por curiosidade do que por esperança.

"Eu acho, velho. Mas não sozinho. Ninguém faz nada sozinho. A gente precisa se unir. Não pode aceitar que a vida é só isso, tá ligado? Ser mais um, morrer jovem, ser esquecido… Não pode."

Olhando pro horizonte, eu queria acreditar nas palavras dele. Queria acreditar que, mesmo com todo o peso do passado e do presente, o futuro pudesse ser diferente. Mas enquanto as sirenes continuassem ecoando, enquanto as mães continuassem enterrando seus filhos, enquanto a gente tivesse que lutar todo dia só pra existir… eu não sabia se isso era possível.

Mas algo dentro de mim, mesmo que pequeno, ainda queimava. Talvez fosse a voz de Lucas, ou o silêncio do meu próprio cansaço, mas naquele dia, pela primeira vez em muito tempo, eu comecei a imaginar um futuro onde a gente não fosse só "mais um".

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