Ai, Você Sai do Gueto

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Capítulo: Aí, Você Sai do Gueto

Sair do gueto não é só uma questão de geografia. Não é só sobre cruzar a ponte e chegar num bairro mais chique, pisar em calçada limpa ou ver um prédio que brilha à noite. Sair do gueto é psicológico, é emocional, é ter o peso do mundo inteiro nas costas e, ao mesmo tempo, carregar a sensação de que não pertence mais a lugar nenhum. Quando você cresce no meio da favela, o gueto entra em você de um jeito que, mesmo se tentar sair, ele continua ali, tatuado na pele, cravado na memória.

Eu saí do gueto, ou pelo menos foi o que disseram. Consegui fazer meu nome, gravar minhas músicas, andar nos carros que antes só via passar rápido na quebrada. As entrevistas começaram a rolar, e as pessoas que me ignoravam agora me olhavam de outro jeito. Mas a verdade é que você nunca sai completamente. O gueto é você, é sua raiz, é o que molda cada passo que você dá.

E eu? Eu fui subindo, mas sempre com um pé preso lá. O gueto não solta fácil. Mesmo com todo o dinheiro, as roupas de marca, os eventos que eu comecei a frequentar, eu continuava ouvindo o eco dos tiros, o som da sirene, as vozes da molecada correndo nas ruas estreitas. E não era só nostalgia. Era a realidade batendo na porta toda vez que eu olhava no espelho. O que eles queriam de mim? Que eu esquecesse? Que eu fingisse que nunca tinha visto de perto a dor, a fome, a morte?

Impossível.

Aí, você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você. Os caras te chamam pra festa, te oferecem bebida cara, falam que você tá vivendo o sonho. Só que no fundo, você sabe que não é bem assim. O sonho é uma ilusão, uma armadilha. O gueto me ensinou a desconfiar, a não acreditar em tudo que brilha, porque nem tudo que brilha é ouro. E essas festas, essas roupas, esses sorrisos... Era tudo fachada. O gueto não esquece, e eu também não.

E sabe o que é pior? É ver os mesmos professores que te olhavam de lado agora te dando tapinha nas costas, como se sempre acreditassem em você. Ver os policiais que te paravam só porque você era preto agora querendo tirar foto contigo, como se o uniforme deles apagasse tudo o que fizeram. Eu saí do gueto, mas o gueto ainda tá aqui. Tá na minha voz, nas minhas letras, no meu jeito de andar.

O que muda é que, agora, eu tô num lugar diferente. A gente cresce achando que sair do gueto é o objetivo, é o prêmio. Mas quando você chega lá fora, vê que o jogo é outro. O preconceito não some, só muda de cara. As propostas indecentes aparecem, os sorrisos falsos também. E, de repente, você se pega pensando: será que valeu a pena?

Será que vale a pena fingir que o gueto não faz parte de quem eu sou?

Eles querem que eu apague minhas origens, que vista um terno e finja que sou um deles. Mas eu nunca vou ser. Porque o gueto é minha verdade, e minha verdade não tem preço. Eu sou o que sou por causa do gueto, e ninguém vai me fazer esquecer disso.

Você sai do gueto, mas o gueto não sai de você.

Negro DRAMAOnde histórias criam vida. Descubra agora