Nois é Isso ou Aquilo, O Quê? Ce Não Dizia?

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Capítulo 66: Nóis é Isso ou Aquilo, O Quê? Cê Não Dizia?

O sol começava a se pôr, tingindo o céu com tons de laranja e rosa, quando Gabriel se encontrou com Ana Beatriz na pracinha que costumavam frequentar na infância. Ele sentia uma mistura de nostalgia e apreensão ao vê-la se aproximar. Ana sempre teve uma presença marcante, mas havia algo diferente em sua postura naquele dia. Seu olhar, antes desafiador e sarcástico, agora parecia mais suave, como se ela estivesse buscando algo além das palavras afiadas que costumava usar.

“Gabriel!” ela o chamou, a voz um pouco hesitante, mas firme. “Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia?” A pergunta que ela jogou no ar não parecia apenas uma provocação, mas um convite para uma conversa mais profunda, para uma reconexão que ambos não sabiam que precisavam.

Ele parou por um momento, lembrando-se das inúmeras vezes que Ana Beatriz havia feito piadas dele na escola. Lembrou dos olhares de escárnio quando ele errava nas provas ou das vezes em que ela o excluía de brincadeiras, como se sua presença fosse um peso. Era como se todas aquelas lembranças viessem à tona, e ele hesitou. “O que você quer, Ana?” ele perguntou, tentando manter a voz neutra, mas sentindo uma pequena faísca de curiosidade e, quem sabe, esperança.

Ana deu um passo à frente, seu olhar fixo no dele. “Olha, eu sei que eu fui escrota, tá ligado? Eu me comportei feito uma vaca, e eu... eu só queria que você soubesse que eu tô tentando mudar, que eu percebo agora o quanto eu fui babaca.” Ela estava nervosa, as mãos tremiam um pouco, mas ela continuou. “Eu queria saber se a gente pode, tipo, começar de novo. Não ser só você e eu da escola, mas talvez ser... algo mais?”

Gabriel sentiu uma onda de confusão. Havia uma parte dele que queria acreditar nas palavras dela, mas as memórias do passado o impediam de se abrir completamente. “Ana, você realmente acha que dá pra voltar atrás? Você me fez passar por tanta coisa. Eu me lembro de cada risada que você deu nas minhas costas, de cada piadinha que você fez”, ele respondeu, sua voz um pouco mais ríspida do que pretendia.

Ana olhou para baixo, envergonhada. “Eu sei, e eu não tenho como mudar isso. Mas eu cresci, Gabriel. Eu queria não deixar suas palavras me afetarem. Quando você e os outros riam, eu tentava esconder a dor, me convencendo de que não importava. Mas importava, e muito.” Gabriel respirou fundo, tentando organizar os pensamentos confusos. A imagem de Ana como a menina popular da escola, que o desprezava, se misturava com a realidade de agora, onde ela parecia disposta a mudar.

“Olha, eu sou um cara diferente hoje. A favela me moldou de um jeito que você não tem ideia. Eu aprendi a me defender, a ignorar quem não me valoriza, e o que você fez me deixou marcas. Eu não posso simplesmente esquecer tudo isso.”

Ana fez uma expressão de dor, como se as palavras de Gabriel a atingissem diretamente. “Eu entendo. Mas eu não sou mais aquela garota. Eu não quero que a nossa história acabe aqui, na raiva e no rancor. Queria que você me desse uma chance de mostrar que eu sou diferente.”

“E se eu te der essa chance e você voltar a ser a mesma? E se você só estiver interessada em como sou agora, e não no que eu sou de verdade? Você já viu como é a vida aqui. Eu sou produto desse lugar, e não vou deixar que ninguém me desmereça de novo.” Ele falava com um tom de desconfiança que fazia sentido para ele, mas que também o deixava angustiado. A vida era um jogo arriscado, e ele não queria se expor novamente a uma possível decepção.

“Eu não quero isso, Gabriel. Eu sei que as palavras não valem nada, mas eu estou aqui, de cara limpa, disposta a ser quem você merece que eu seja. Eu posso não ter sido uma boa amiga no passado, mas eu quero ser diferente agora. Eu quero saber mais sobre você, sobre sua vida, sobre como você sobreviveu a tudo isso.” Ana estava genuinamente emocionada, e sua sinceridade começou a tocar algo dentro de Gabriel.

Ele se lembrou de todos os dias difíceis, das lutas que enfrentou para não ser apenas um “vagabundo” na visão dos outros, de como cada insulto e risada se tornaram combustível para ele se transformar em quem era. E no fundo, uma parte dele sentia que Ana, mesmo com seu passado, poderia trazer algo novo para sua vida.

“Tudo bem, vamos começar do zero então. Mas quero que você saiba que, pra mim, isso vai levar tempo. Eu não sou um coração de pedra, mas também não sou ingênuo. A vida na favela é dura, e o que você tem que entender é que aqui não tem como deixar as coisas de lado só porque você decidiu mudar.”

Ana acenou com a cabeça, mostrando que compreendia a gravidade da situação. “Prometo que não vou desistir de você. E vou fazer questão de mostrar que posso ser alguém melhor.”

A conversa começou a fluir de maneira diferente. Eles falaram sobre suas vidas, suas esperanças e os desafios que enfrentaram. Gabriel contou sobre seu sonho de ser músico, de como ele via a arte como uma saída, uma forma de expressar tudo o que passava na favela. Ana, por sua vez, falou sobre as dificuldades que enfrentou, o que a levou a se tornar quem era e como se sentia perdida no meio da pressão de ter que se encaixar em padrões que nunca foram os dela.

Gabriel, aos poucos, percebeu que, por trás das falas de Ana, havia uma história de luta e uma busca por aceitação que ressoava com a sua própria.

“O que importa é que a gente aprenda a crescer com as experiências, não acha? Você pode ter sido a vilã da minha história até agora, mas quem sabe a gente não escreva um novo capítulo juntos?” ele sugeriu, um sorriso tímido surgindo em seu rosto.

Ana sorriu de volta, o olhar agora repleto de um novo significado. “Sim, Gabriel. Vamos escrever um novo capítulo. E esse vai ser só nosso.”

Assim, em meio a memórias difíceis e um futuro incerto, dois jovens da favela começaram a traçar um novo caminho. Entre a luta e a resistência, a amizade começava a se solidificar, desafiando as expectativas de um passado marcado por dor e desconfiança. No fundo, ambos sabiam que cada escolha, cada palavra, poderia ser a base de uma nova história, mais rica, mais cheia de vida.

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