A Garoa Rasga a Carne, É a Torre de Babel

1 0 0
                                    

Capítulo 74: A Garoa Rasga a Carne, É a Torre de Babel

A garoa fina de São Paulo caía como um manto sobre a cidade, um véu que parecia esconder a dor e a angústia das ruas. A cada gota que batia em minha pele, sentia uma mistura de frio e ardor, como se a cidade quisesse me marcar de alguma forma. Era como se a chuva dissesse: "Você pertence a este lugar, e a sua história é uma parte dela."

Enquanto caminhava, a garoa transformava a paisagem em um cenário quase surreal. O som dos carros passando, os gritos dos vendedores ambulantes, o murmúrio da multidão – tudo se misturava em uma sinfonia caótica, como a Torre de Babel, onde cada um falava sua própria língua, mas ninguém se entendia. Em meio a isso, eu me sentia pequeno, perdido em um mar de vozes e rostos que se cruzavam sem realmente se encontrarem.

A cidade tinha seu próprio idioma, e eu tentava decifrá-lo. Mas o que se via era a solidão entre milhares de pessoas. "Por que será que é tão difícil se conectar?", pensei, lembrando das histórias da minha mãe sobre a luta dela para criar um lar em meio à pobreza. A garoa que caía não apenas molhava o chão, mas também parecia lavar as memórias, deixando uma sensação de que o passado estava sempre presente, mas nunca acessível.

A iluminação das ruas refletia nas poças, criando um efeito de luz e sombra que se assemelhava à dualidade da vida na favela. Por um lado, havia os sonhos, as aspirações de uma vida melhor; por outro, as garras do crime e da violência que muitas vezes teimavam em puxar as pessoas para baixo. "Aqui não é fácil", dizia minha mãe, e eu sentia a dor de cada palavra dela ecoar em minha mente.

Eu olhava para os prédios ao meu redor, imponentes, quase como se estivessem me observando. “Você é só um garoto da quebrada”, pensei, lembrando-me de todos os que acreditavam que o mundo lá em cima era inacessível para mim. A garoa me fazia refletir sobre essa divisão. Era uma barreira invisível que separava os que tinham tudo dos que lutavam para ter um pouco. A cada passo, eu sentia que a cidade estava testando minha determinação, questionando se eu realmente tinha o que era preciso para ser alguém.

“Você é mais um na multidão, mas e se eu me recusar a ser só mais um?”, a pergunta me atormentava. Em meio a esse pensamento, vi um grupo de jovens se reunindo em uma esquina. Riam, compartilhavam histórias, e por um momento, parecia que a garoa não importava. Havia uma camaradagem ali, um laço que transcendeu a luta diária.

Mas logo a realidade se impôs novamente. O barulho de uma sirene cortou o ar, e a tensão se espalhou. As risadas foram substituídas por sussurros nervosos, e os rostos se tornaram sérios. A liberdade que a amizade proporcionava se esvanecia rapidamente. "É assim que a vida é, um ciclo de risos e lágrimas", percebi, enquanto a garoa continuava a cair, como uma testemunha silenciosa de tudo.

Olhei para o céu cinzento e pensei: “São Paulo, você é a Torre de Babel e eu sou só um eco perdido entre suas paredes”. Mas essa cidade, com suas contradições e seu caos, ainda era minha. E, mesmo que a garoa tentasse rasgar a carne, eu estava determinado a lutar, a gritar, a fazer com que minha voz fosse ouvida, mesmo que o mundo parecesse indiferente.

Com cada gota que caía, eu me sentia mais forte. A garoa não era apenas um símbolo de tristeza; era uma lembrança de que a vida seguia, e que, apesar das dificuldades, eu tinha a chance de escrever minha própria história. E se a cidade quisesse me calar, eu gritaria mais alto, porque ser de São Paulo significava lutar para ser ouvido.

---

Negro DRAMAOnde histórias criam vida. Descubra agora