Problemas

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O céu estava cinza naquela manhã. O tipo de cor que parece anunciar que nada de bom vem por aí. O caminho pra escola parecia mais pesado, mais longo, como se cada passo fosse puxado de volta pela lama invisível que cercava a quebrada. Era um daqueles dias em que o ar parecia preso nos pulmões, e até respirar parecia uma tarefa árdua.

Lucas tinha falado comigo de novo sobre "mudar o jogo". Ele sempre falava disso, com aquele brilho nos olhos, aquela fé inabalável em algo melhor. Mas o brilho nos olhos dele não mudava a realidade. A gente ainda morava nos mesmos barracos, ainda via os mesmos meninos serem levados pela polícia ou pelo tráfico, e as mesmas mães chorando no fim do dia.

A escola estava cheia de vozes, mas eu não conseguia focar em nenhuma. Sentei no canto, com o Davi, enquanto ele rabiscava algo no caderno. Desde que o irmão dele morreu, ele começou a desenhar mais. Era o jeito dele de silenciar o mundo ao redor, de fugir pra um lugar onde o som das sirenes não invadia os pensamentos. Eu entendia, todo mundo ali tinha seu jeito de escapar.

"Você tá bem, mano?" perguntei, mesmo sabendo que não existia uma resposta certa pra isso. A gente estava vivo, respirando, mas dizer que isso era estar bem era forçar demais a verdade.

Davi levantou os olhos lentamente do caderno, as olheiras fundas, e deu de ombros. "Tô aqui, né?"

Era o máximo que ele diria. Às vezes, era tudo o que a gente conseguia dizer. Estar aqui já era a luta.

O professor de história entrou na sala com aquele jeito desinteressado, o livro debaixo do braço. O tema do dia era sobre a escravidão e a resistência dos quilombos. Eu sempre achei que esses momentos de aula pareciam irônicos, como se a gente estivesse estudando um passado que nunca foi realmente passado. O que era diferente entre Palmares e a nossa quebrada? Talvez só a época.

Enquanto ele falava sobre Zumbi e os quilombolas, eu olhava pela janela. Lá fora, a vida seguia, com ou sem a gente. Eu pensava em como, de certa forma, a gente era como eles: resistindo, lutando pra sobreviver em um sistema que foi construído pra nos oprimir. Mas ao contrário deles, nosso inimigo era invisível, disfarçado de oportunidades falsas e sonhos vazios.

Lucas entrou na sala correndo, atrasado como sempre, com um sorriso malandro no rosto. “Perdi alguma coisa?”

“Só a história de como a gente tá fadado a viver como escravos modernos,” murmurei. Ele deu uma risada baixa, como se achasse graça na minha amargura. Lucas sempre enxergava o lado bom, mesmo quando não tinha. Acho que era a única coisa que o mantinha de pé.

“Tá ligado que a gente não precisa viver assim, né?” ele falou, puxando uma cadeira ao meu lado. “Mano, sério, isso tudo é sistema. Se a gente se unir, se lutar junto, dá pra quebrar isso. Eu tava falando com o pessoal da outra escola, eles tão montando uns grupos pra discutir essas paradas, mano. A gente precisa entrar nisso.”

Eu fiquei em silêncio. Ouvir Lucas falar de revolução era inspirador, mas a realidade pesava. A gente já estava tão quebrado pelo sistema, tão acostumado a ser oprimido, que acreditar em mudança parecia utópico demais.

"Acha que eles vão ouvir a gente, Lucas? Acha que alguém liga pro que a gente pensa?" perguntei, sem esconder o ceticismo na minha voz.

Lucas me encarou com seriedade. "Não importa se eles ligam, Gabriel. O que importa é a gente se fazer ouvir. Se a gente não falar, quem vai? Se a gente não resistir, a gente tá aceitando que isso aqui é o máximo que a gente pode ser. Eu me recuso a aceitar isso."

Eu queria ter essa força. Mas toda vez que eu olhava ao redor, via a mesma realidade sufocante. As mesmas crianças descalças, as mesmas mães cansadas, os mesmos jovens com olhares vazios, entregues a um destino que eles nem escolheram. Era como se a vida tivesse sido decidida pra nós antes mesmo de nascermos. E lutar contra isso parecia uma guerra sem fim.

A aula acabou e a gente foi pra quadra. O lugar onde, por algumas horas, a gente esquecia que a vida era uma batalha. O futebol era nossa fuga, o único lugar onde a gente controlava o jogo, onde o destino estava no nosso pé, e não nas mãos de alguém que nunca nos viu como seres completos. Na quadra, não importava quem a gente era fora dela. Não havia polícia, não havia tráfico, não havia o sistema que nos quebrava em pedaços. Lá, a gente era livre.

Davi já estava no gol, meio desligado como sempre, mas com aquele olhar de quem daria a vida por um jogo bem jogado. Lucas estava como sempre, cheio de energia, driblando como se a vida dele dependesse disso. E talvez dependesse, de certa forma. Ele jogava como quem luta, como quem acredita que se jogar o suficiente, se colocar tudo o que tem em campo, um dia, o jogo da vida também mudaria.

O som da bola batendo no asfalto, o grito dos moleques, as risadas, por um momento, tudo fazia sentido. Era como se a quadra fosse um portal pra uma realidade paralela, onde a cor da nossa pele não era uma sentença, onde nossa quebrada era ar onde a vida não hais um detalhe e va ser tão pesada.Eu estava no meio do campo, a bola no meu pé, quando de repente ouvi um som que cortou o ar. Não era o som da bola, nem das risadas, mas o som que a gente mais temia. As sirenes. As malditas sirenes de novo.

Elas chegaram rápido, sem aviso, como sempre. A polícia invadiu a quadra, sem se importar com quem éramos ou o que estávamos fazendo. Era como se o simples fato de estarmos ali, vivendo, já fosse uma afronta. Eles entraram como se fossem donos do lugar, com aquelas armas pesadas, apontando pra todo mundo, mandando a gente parar.

"Encosta aí, vagabundo!" gritou um deles, mirando direto no Lucas.

Meu coração acelerou. Lucas? Por quê? Ele não fazia nada de errado. A gente estava só jogando bola. Mas a verdade é que, pra eles, não importava o que a gente estava fazendo. Não importava se a gente era inocente ou culpado. Naquele momento erámos mais uma ameaça, mais um suspeito" por existir".
Lucas levantou as mãos, sem deixar de encarar o policial. Ele não baixava o olhar, não mostrava medo. E isso, de alguma forma, me dava pavor. Eu sabia como isso terminava. Sabia que, quanto mais ele resistisse, mais perigoso tudo ficava.

"Mano, calma," eu sussurrei, tentando me aproximar. "Faz o que eles mandam."

Mas Lucas não abaixava a cabeça. Ele sempre foi assim. Não aceitava ser menos. Não aceitava que o tratassem como lixo. Eu via o conflito nos olhos dele, o orgulho misturado com a raiva, e algo dentro de mim começou a gritar. Um medo que eu nunca tinha sentido antes.
O policial se aproximou mais, com o dedo já no gatilho. "Eu disse pra encostar!"

E então tudo aconteceu rápido demais. Um movimento brusco, uma palavra errada, e de repente eu ouvi o som. Um estalo seco, que cortou o ar como uma lâmina. Um tiro. Um maldito tiro.

Lucas caiu no chão, o boné desbotado rolando para longe. O sangue manchava o asfalto, misturado com o grito desesperado que eu nem sabia que estava saindo da minha garganta. Era como se o mundo tivesse parado. Tudo ao meu redor ficou em silêncio, exceto pelo som daquele disparo, ecoando na minha cabeça.

Corri até ele, minhas mãos trêmulas tentando segurar o que não podia ser segurado. O sangue escorria pelos dedos, quente e viscoso. "Lucas, mano, fala comigo," eu repetia, mas a voz dele não vinha. Ele só olhava pra mim, os olhos perdendo o brilho. Aquele brilho de quem acreditava que tudo podia ser diferente. Aquele brilho de quem nunca aceitou ser só mais um.

Mas agora ele era. Mais um. Mais um corpo no chão da favela, mais um nome nas estatísticas que ninguém lê. Mais um garoto que acreditava que a vida podia ser mais, mas que a realidade arrancou antes que ele pudesse mudar alguma coisa. Os policiais foram embora como chegaram. Sem explicação, sem justificativa. Apenas mais um dia na quebrada, apenas mais um jovem negro morto por existir.

Eu fiquei ali, de joelhos no chão, o sangue de Lucas ainda fresco nas minhas mãos. E naquele momento, algo dentro de mim quebrou. Todo o medo, toda a dor, toda a raiva que eu guardava começaram a crescer como uma chama. O que eles fizeram com Lucas, o que eles faziam com a gente, dia após dia, não podia mais ser ignorado.

Lucas estava certo. A gente precisava lutar. Não dava mais pra aceitar que isso aqui era tudo. Não dava mais pra ser só mais um. Eu não sabia como, não sabia quando, mas naquele instante, jurei que eles iam ouvir nossa voz. Jurei que a memória de Lucas não ia ser esquecida. E que, por ele, por todos nós, eu ia lutar. Mesmo que o sistema tentasse nos calar, mesmo que a realidade fosse forte demais para resistir. Porque Lucas não podia ser só mais um.

Ele era muito mais que isso,
Eu comecei a escrever.

Negro DRAMAOnde histórias criam vida. Descubra agora