O Trauma Que Eu Carrego

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Existem coisas que a gente não esquece, que se grudam na pele como cicatrizes invisíveis. Eu carrego o peso de muitos dias e muitas noites. Dias de silêncio sufocante e noites de gritos que nunca foram ouvidos. Carrego comigo o trauma de uma vida inteira, o tipo de coisa que molda quem você é sem pedir licença, que te empurra para um caminho que você nunca escolheu.

O trauma não vem com avisos, não bate na porta antes de entrar. Ele se instala devagar, disfarçado de momentos isolados, de palavras cortantes, de olhares que atravessam a alma. Aos poucos, ele se torna parte de você, parte do seu jeito de andar, de falar, de reagir. E no fundo, é impossível escapar dele.

O primeiro trauma que me lembro aconteceu muito antes de eu saber o que a palavra significava. Eu era só uma criança quando senti, pela primeira vez, o peso de não ser suficiente, de não ser visto da mesma forma que os outros meninos. Era sempre um olhar desconfiado, uma repreensão rápida, como se eu estivesse prestes a cometer um erro antes mesmo de fazer qualquer coisa.

Na escola, eu já sabia que o mundo não era igual para todos. Os professores falavam comigo com um tom diferente, com uma paciência disfarçada de impaciência, como se estivessem apenas esperando a hora de me ver falhar. E quando eu falhava, a confirmação vinha rápida demais, um reforço do que eu já temia: não importava o quanto eu tentasse, sempre seria menos do que esperavam de mim.

O trauma começou ali, no silêncio das expectativas não correspondidas. Mas ele cresceu, se alimentou das perdas e das rejeições que vieram depois.

Os anos passaram, e eu descobri que o mundo era ainda mais cruel do que eu imaginava. Ser negro, pobre e querer conquistar o que os outros tinham era pedir para ser esmagado. As portas fechadas na minha cara, as oportunidades arrancadas antes mesmo de serem oferecidas, tudo isso começou a pesar. A cada "não", a cada olhar de desprezo, o trauma se aprofundava, enraizando-se em quem eu estava me tornando.

Mas o trauma que mais me marcou, que me rasgou por dentro e deixou uma ferida aberta, foi a perda de alguém que significava o mundo para mim. Minha mãe. Ela era minha fortaleza, meu norte. Tudo o que eu fazia era para ela, para tirar nós dois daquele buraco em que estávamos afundados. Mas a vida foi injusta. Ela se foi cedo demais, deixando para trás um vazio que nunca consegui preencher.

A dor da perda é um tipo de trauma que ninguém pode descrever. É como se uma parte de você fosse arrancada, e o que sobra é apenas uma sombra do que você era antes. Eu me tornei frio depois disso, endureci meu coração. Porque se eu sentisse a dor, se eu deixasse o luto tomar conta, eu sabia que não teria forças para continuar. Então, eu enterrei o trauma fundo dentro de mim, mas ele nunca desapareceu. Ele apenas cresceu em silêncio, me consumindo aos poucos.

As ruas, com o tempo, se tornaram meu refúgio, o único lugar onde eu podia existir sem ser questionado, onde meu trauma era compreendido sem palavras. Davi e eu falávamos muito sobre isso, sobre como a vida nos machucava de formas diferentes, mas, no fim, todos carregávamos nossos traumas. Cada um com a sua dor, cada um com a sua batalha.

Mas o que o trauma faz é te transformar, te moldar em alguém que você não reconhece mais. Às vezes, me pergunto se a pessoa que eu era antes de todas essas cicatrizes ainda existe, ou se foi enterrada junto com os sonhos que tive de uma vida diferente.

Eu não sei como seria viver sem carregar essa bagagem. Não sei o que é acordar de manhã sem sentir o peso invisível que empurra meus ombros para baixo. E talvez, no fundo, eu tenha aceitado que o trauma é parte de mim agora. Não como uma desculpa, mas como uma verdade.

Eu continuo caminhando, carregando as marcas invisíveis que o mundo deixou em mim. Porque no final, o trauma não me define. Ele é parte da minha história, mas não é a história inteira. E apesar de tudo, eu ainda estou aqui.

E isso, por si só, já é uma vitória.

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