Sangue

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O sangue. Sempre ele. Vermelho, viscoso, escorrendo pelo asfalto quente da favela, manchando as mãos de quem tentou salvar, os gritos abafados pelas sirenes. Desde pequeno, o sangue é algo que a gente aprende a não temer, mas a reconhecer. Sangue é sinal de que alguém se foi, de que mais uma vida foi tomada pelo caos que nos rodeia. Aqui, o sangue não é novidade, mas toda vez que o vejo, algo dentro de mim se quebra um pouco mais.

Eu lembro do cheiro. É um cheiro que gruda na pele, entra pelas narinas e se agarra à memória como uma marca indelével. Quando o sangue começa a jorrar, tudo ao redor desacelera, como se o mundo inteiro estivesse assistindo o momento em que uma alma escapa. Mas não há tempo para contemplar, não há espaço para lágrimas. O sangue aqui é sempre presságio de mais dor, mais perda. E a gente continua andando.

Já vi o sangue de estranhos e de amigos. Já tentei estancar feridas que eu sabia que não tinha como fechar, colocando pressão com as mãos, enquanto os olhos da pessoa se perdiam num vazio profundo. Era como se a vida se esvaísse por entre meus dedos junto com o sangue, e eu me via impotente, desejando que minhas mãos fossem suficientes para segurar aquela alma no corpo.

Um dia, foi o meu sangue que pintou o chão. Naquela tarde, a bala passou perto, tão perto que senti o calor do metal rasgando a pele. O sangue escorreu pela minha perna, misturando-se com a poeira da rua, enquanto eu tentava manter a calma. Não era grave, mas a sensação de ver o próprio sangue ali, exposto, era um lembrete cruel de que, qualquer hora, poderia ser o fim. O sangue de outros parecia distante, mas quando é o seu, tudo muda. A fragilidade da vida, a proximidade do fim, tudo isso fica mais claro.

Na favela, o sangue é a única certeza. O ciclo de violência parece infinito, um círculo vicioso que nunca cessa. Hoje é um, amanhã outro, e a gente segue, tentando não ser o próximo. Mas a cada vida perdida, a cada corpo caído, o sangue nos lembra que todos estamos na mira, todos somos alvos de um sistema que nos empurra para o fundo.

Rayssa uma vez me disse que o sangue era sagrado, que cada gota derramada naquelas ruas deveria ser lembrada, honrada. Mas na correria do dia a dia, quantas dessas vidas a gente consegue honrar de verdade? Quantos nomes ficam gravados em nossa memória antes de serem substituídos por outros? O sangue de muitos se mistura e vira parte da paisagem, parte da nossa realidade.

A vida, aqui, parece sempre à beira de escorrer pelo ralo junto com o sangue. E mesmo assim, a gente resiste. Resiste porque, por mais que o sangue seja derramado, ele é também símbolo de luta, de sobrevivência. Cada gota que cai é um lembrete de que ainda estamos vivos, de que estamos aqui, ainda respirando, mesmo diante da morte iminente. O sangue que escorre de nossas feridas nos diz que ainda temos mais batalhas para lutar, mais vidas para honrar.

O sangue é memória. Ele carrega as histórias de quem veio antes, daqueles que pavimentaram nosso caminho com sacrifício. Ele grita as dores que a favela carrega em silêncio, a brutalidade de uma realidade que muitos preferem ignorar. Mas, para nós, cada gota tem seu peso. O sangue dos nossos é como uma marca invisível, que nos une, que nos faz lembrar que estamos todos ligados pela mesma luta, pela mesma dor.

Eu olho para as cicatrizes no meu corpo, cada uma delas fruto de uma batalha, de uma tentativa de escapar desse ciclo. Cada corte, cada ferida, carrega uma história. E, embora o sangue já tenha secado, a lembrança de cada gota derramada permanece viva dentro de mim.

No fim, o sangue é a linha que divide a vida da morte, a paz da guerra. E enquanto ele ainda estiver correndo em minhas veias, vou continuar lutando. Porque, na favela, o sangue pode ser o começo do fim, mas também é o combustível que nos mantém de pé, firmes, desafiando a sorte e o destino.

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