---A dor nunca foi uma visitante temporária. Era uma presença constante, arraigada na pele, na alma, nas ruas que me moldaram. A ferida não era apenas física, nem a chaga era algo que poderia ser coberto com ataduras. Era uma dor profunda, que cortava como faca, e que se arrastava há anos, silenciosa, mas sempre presente. Eu sabia que a cura, se é que ela existia, não seria fácil de encontrar.
Depois daquele episódio com Ana Beatriz e o racismo explícito que vivíamos todos os dias, uma rachadura se abriu dentro de mim. A luta por justiça por Lucas havia despertado algo maior, algo que ia além da nossa pequena marcha. Era sobre as feridas de toda uma geração, de todas as gerações que vieram antes de nós, carregando essa dor que parecia nunca ter fim.
Naquela noite, deitei na minha cama, encarando o teto do quarto. A luz fraca do poste do lado de fora entrava pela janela, lançando sombras irregulares pelas paredes. O silêncio da casa era opressor, como se até ele estivesse cansado de tanto sofrimento. Minha mãe dormia no quarto ao lado, exausta depois de mais um dia de trabalho. E eu ficava ali, lutando com meus próprios pensamentos, tentando encontrar sentido nas cicatrizes invisíveis que carregávamos.
Por mais que tentássemos, era impossível ignorar a chaga. Ela estava em tudo – nos olhares desconfiados quando entrávamos em uma loja, nos sussurros abafados pelos corredores da escola, nas piadas disfarçadas de "brincadeira" que nos eram lançadas. Cada palavra, cada gesto, eram como sal jogado em uma ferida que nunca se fechava.
Mas o que mais doía era o vazio. A sensação de que estávamos sempre à margem, sempre à procura de algo que talvez nunca encontrássemos. A cura. Essa ideia parecia cada vez mais distante, como um sonho inalcançável, uma miragem no deserto da nossa existência. E quanto mais tentávamos caminhar em sua direção, mais a dor parecia aumentar.
Nos dias que se seguiram, vi Davi se fechar. O brilho que ele costumava ter nos olhos agora estava opaco, como se a luta tivesse sugado a energia dele. E eu me sentia impotente, incapaz de ajudá-lo ou de me ajudar. Nossas conversas ficaram mais curtas, mais silenciosas. Até as risadas, que antes surgiam com facilidade entre a gente, tinham sumido. Parecia que a dor havia encontrado uma nova maneira de nos aprisionar.
Um dia, depois da escola, decidi dar um passeio sozinho pela quebrada. Caminhei por ruas que conhecia tão bem, passando por casas antigas, pichadas, e muros altos que escondiam realidades ainda mais duras do que as nossas. As pessoas me cumprimentavam com acenos, rostos conhecidos de toda a vida, mas suas expressões refletiam o mesmo cansaço que eu sentia. Todos estavam à procura da cura, mas ninguém sabia como encontrá-la.
Acabei parando em frente ao antigo campinho onde jogávamos bola quando éramos crianças. O campo estava vazio agora, coberto por mato alto, como um reflexo do abandono que sentíamos. Sentei em um dos bancos quebrados e fechei os olhos, tentando acalmar o tumulto que reinava na minha mente.
Foi então que me lembrei de Lucas. A dor de perder um amigo, a raiva de saber que ele foi tirado de nós tão cedo, ainda queimava dentro de mim. Mas junto com essa dor veio outra lembrança: o riso dele. O jeito que ele sempre encontrava para nos fazer rir, mesmo nos momentos mais difíceis. Lucas nunca deixou a ferida defini-lo. Ele carregava as cicatrizes, mas também sabia como encontrar momentos de cura, por menores que fossem.
Talvez essa fosse a chave. Talvez a cura não fosse uma coisa grandiosa e definitiva. Talvez ela estivesse nos pequenos momentos de alegria, de conexão, de luta. Talvez a cura estivesse em continuar existindo, em resistir, em não deixar que a dor nos engolisse completamente.
Quando voltei pra casa naquela noite, senti um peso diferente sobre mim. A chaga ainda estava lá, e eu sabia que levaria muito tempo, talvez a vida toda, pra ela cicatrizar de verdade. Mas também havia algo novo – uma chama pequena, mas persistente. Uma esperança de que, mesmo que a cura fosse uma jornada longa, cada passo adiante nos aproximava um pouco mais dela.
No dia seguinte, voltei a falar com Davi. Encontrei-o no mesmo lugar de sempre, na escadaria da escola. O olhar dele ainda estava cansado, mas dessa vez, havia algo diferente em sua expressão, como se ele também tivesse encontrado um pequeno lampejo de esperança.
“Você acha que algum dia a gente encontra a cura?” ele perguntou, sem rodeios.
Eu pensei por um momento antes de responder. “Acho que a gente já tá procurando, mano. E enquanto a gente continuar caminhando, isso já é parte da cura.”
Davi assentiu, um sorriso discreto se formando em seu rosto. “Então, vamo continuar caminhando.”
E assim, a gente seguiu. Com as feridas abertas, as cicatrizes que nos definem, mas também com a vontade de continuar em frente. Porque no fim, a busca pela cura é a própria cura. É o que nos mantém vivos, o que nos dá força para resistir. E enquanto tivermos essa força, enquanto não deixarmos a dor nos consumir, sempre haverá esperança.
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Negro DRAMA
Fiksi Sejarah"O Peso do Silêncio" é um romance visceral que mergulha nas profundezas da vida na periferia, inspirado no icônico "Negro Drama" dos Racionais MC's. A história acompanha Gabriel, um jovem negro que luta contra o sistema opressor que já o condenou de...