Luxo

1 0 0
                                    


A reunião na quebrada se espalhou como fogo em palha seca. A cada dia que passava, a ideia de organizar uma marcha em homenagem a Lucas ganhava mais força. Mas, por outro lado, a vida continuava com suas contradições. Enquanto a gente se preparava pra lutar, o mundo do lado de fora mostrava uma realidade que parecia distante: o luxo que algumas pessoas viviam enquanto nós batalhávamos para sobreviver.

Fui visitar Davi em sua casa, que ficava no pé da favela, e a diferença entre nossas vidas era mais evidente do que nunca. Ele morava em uma pequena casa de dois cômodos, com as paredes descascadas e o cheiro da comida que sua mãe fazia sempre no ar. Mas, logo ali, na esquina da rua, havia uma mansão enorme, com portões de ferro, jardins bem cuidados e um carro de luxo brilhando sob o sol. Era como um oásis de riqueza cercado por um deserto de necessidades.

“Olha isso, mano,” eu disse, apontando para o carro que estacionava na frente da mansão. “Como é que um cara que tem tudo consegue ignorar a gente aqui embaixo? Esses caras não têm ideia do que a gente passa, né?”

Davi bufou, com um misto de desprezo e tristeza. “Esse é o problema. Eles só enxergam o que querem. O luxo os cega. E pra eles, nossa dor é só um eco distante. Não faz parte do mundo deles.”

E era verdade. No dia da marcha, as redes sociais estavam cheias de postagens sobre eventos de gala, festas luxuosas e inaugurações de shopping centers. Era um desfile de ostentação, enquanto a gente se mobilizava pra lembrar de um amigo que nunca mais voltaria. A desconexão entre esses dois mundos me deixava perplexo. Como podiam viver com tanta indiferença?

Na escola, as conversas giravam em torno de uma festa de aniversário de uma das meninas mais populares, Ana Beatriz, claro. O evento prometia ser o maior da temporada, com convites personalizados, um buffet caro e até DJ famoso. “Vai ser o melhor rolê do ano,” ela disse, exibindo um sorriso que mostrava dentes perfeitos. “Todo mundo vai estar lá. Se você não vier, vai perder a melhor festa da sua vida.”

A sala inteira vibrou com a ideia, mas eu não conseguia participar da empolgação. Enquanto ela falava, minha mente estava presa em Lucas e no que ele significava. Era difícil ver as pessoas tão absorvidas pelo luxo e pela superficialidade quando a dor estava tão presente.

“E aí, Gabriel, vai?” Davi perguntou, notando meu silêncio.

“Claro que não,” respondi. “Não dá pra ficar fingindo que tá tudo bem enquanto a gente tá perdendo nossos amigos e lutando contra um sistema que nos destrói.”

O olhar de Davi expressava compreensão. “Pois é. A gente precisa mostrar pra eles que a vida não é só festa e glamour. A nossa realidade é bem diferente. E se eles não querem ver, então a gente precisa fazer barulho ainda mais alto.”

E foi isso que decidimos. Na semana da festa de Ana Beatriz, nós organizamos uma marcha. Mas não seria apenas uma marcha comum. Queríamos que as pessoas vissem a realidade que era ignorada, mesmo que estivessem a poucos passos da nossa dor. Com cartazes, faixas e um microfone, a ideia era invadir o mundo do luxo com nossas vozes.

No dia da festa, enquanto a música pulsava e as luzes brilhavam na casa de Ana, nós nos reunimos na esquina da mansão, prontos para fazer ecoar a verdade que muitos queriam ignorar. O contraste entre as nossas roupas simples e os trajes de gala dos convidados era chocante. Mas era isso que queríamos. Mostrar que não éramos invisíveis, que existíamos mesmo diante de toda aquela ostentação.

“Preparados?” eu perguntei, olhando para Davi e o resto da galera. Eles assentiram, com um brilho de determinação nos olhos.

A marcha começou, e nossas vozes se ergueram como um grito de resistência. “Lucas vive! A quebrada resiste!” gritamos, cada vez mais altos, ecoando pela rua. Algumas pessoas começaram a parar, a olhar, a registrar a cena em seus celulares. Era um sinal de que estávamos sendo ouvidos, que a nossa dor não seria ignorada.

E enquanto as luzes da festa brilhavam ao fundo, nós éramos a escuridão que se fazia notar. O luxo não poderia abafar nossa voz. Nossas vidas não eram um espetáculo a ser ignorado. Aquela marcha era o grito de todos que se sentiam invisíveis, um lembrete de que a dor e o amor eram parte da vida, independente do quão distantes estavam os mundos.

E naquela noite, no meio da nossa luta, eu percebi que a verdadeira força não vinha do luxo, mas da união. A força de quem já havia vivido a dor, de quem se levantava e dizia “não” à indiferença. Porque, no final das contas, Lucas não era apenas uma memória; ele era a chama que nos impulsionava a lutar por um mundo onde todos, independentemente da cor ou da classe social, tivessem seu espaço e sua voz.

E se a marcha pudesse tocar um coração, mudar uma mente, ou fazer alguém se lembrar que a vida de Lucas era tão valiosa quanto qualquer festa de gala, então já valeria a pena.

---

M

Negro DRAMAOnde histórias criam vida. Descubra agora