Veja você quem mata

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O ciclo nunca para. A morte aqui é tão constante quanto o nascer do sol, e quem puxa o gatilho pode ser qualquer um. Pode ser o traficante com quem você cresceu, o policial que passa pelas ruas como se fosse dono de tudo, ou até aquele menino que um dia era só uma promessa, mas agora não passa de mais um produto da violência que a favela fabrica. O que ninguém quer admitir é que, às vezes, a gente também mata. Não com armas, não com tiros, mas com palavras, omissões e olhares de desprezo.

Veja você quem mata.

Não é só o dedo que aperta o gatilho que leva a vida de alguém. Às vezes, o silêncio mata. Às vezes, a indiferença é a arma mais mortal. E Maria sabia disso. Ela sabia que, em algum momento, o descaso com Richard, as palavras não ditas, as conversas evitadas, tudo isso contribuiu para o fim trágico dele. Ela não era a única culpada — ninguém era, e, ao mesmo tempo, todos eram.

Ela se perguntava se poderia ter feito algo diferente. Se, ao invés de olhar pra outro lado quando Richard começou a se perder, tivesse segurado a mão dele, olhado nos olhos e dito a verdade: que ele não precisava provar nada pra ninguém, que ele já era alguém. Mas quem pode culpar? Na favela, todo mundo está tentando sobreviver, cada um com seu próprio fardo e suas próprias feridas.

Richard matou a si mesmo, de certo modo. Matou sua essência na busca pelo brilho que ele nunca conseguiu alcançar. Mas a verdade é que muitos o ajudaram a cavar sua própria cova. A comunidade, que às vezes é proteção, também pode ser uma jaula. Quem não se encaixa no padrão, quem não segue as regras invisíveis, acaba empurrado para a margem da margem, onde só restam decisões desesperadas.

Veja você quem mata.

O sistema que não vê a favela como parte da cidade. O governo que faz vista grossa. A polícia que só aparece para reprimir, nunca para proteger. A mídia que mostra um rosto negro caído no chão e rapidamente muda de cena. Todo mundo tem uma parcela de culpa no corpo estirado, no sangue escorrendo entre as frestas do asfalto rachado.

E a favela? A favela mata seus próprios filhos também. No começo, acolhe, dá vida, cria laços fortes. Mas, conforme o tempo passa, os mesmos becos que antes pareciam seguros começam a se fechar. As regras não escritas, as hierarquias invisíveis, o jogo de poder que faz você escolher entre ser caçador ou presa. Quem não se adapta, quem tenta sair do roteiro, acaba sendo devorado. Não há escapatória fácil.

Maria viu isso nos olhos de Richard. Nos últimos dias, ele estava diferente, mais tenso, mais fechado. Talvez ele já soubesse que estava marcado, que seu destino já tinha sido selado antes mesmo dele perceber. Mas o olhar dele também refletia algo mais profundo: a desilusão de quem entende, tarde demais, que o sistema foi feito para esmagar, não para salvar.

Aquele tiro que o derrubou não foi só o fim de uma vida. Foi o fim de um sonho, o fim de uma batalha que, desde o início, estava perdida. E quem apertou o gatilho? Pode ter sido um inimigo, pode ter sido um “amigo”, pode ter sido o próprio destino. Mas, no fundo, quem realmente mata é o contexto, o ambiente que transforma vidas em estatísticas.

Veja você quem mata.

Maria se sentiu sufocada por essa verdade. Não havia ninguém para culpar diretamente. Todos tinham uma parcela de culpa. Richard, ela, a comunidade, o sistema. E é isso que dói mais. Porque, quando a responsabilidade está diluída entre tantos, quem sobra para carregar a culpa? Quem fica para suportar o peso das vidas perdidas?

Ela fechou os olhos, tentando afastar o pensamento. Mas sabia que nunca seria capaz de se livrar dele. Richard era mais um na longa lista de histórias que terminavam do mesmo jeito. E, enquanto nada mudasse, o ciclo continuaria. A cada novo dia, a cada novo nome, o grito silencioso ecoava pelas vielas:

Veja você quem mata.

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