Invejas

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O dia seguinte chegou com o peso de um mundo desabado sobre os meus ombros. O silêncio na quebrada era ensurdecedor. As sirenes ecoavam na minha cabeça, e o que acontecera com Lucas se repetia como um pesadelo que não me deixava acordar. A tristeza estava presente em cada canto, em cada olhar perdido, mas havia algo mais. Algo que crescia nas sombras.

As notícias sobre a morte de Lucas se espalharam rapidamente. O clima na escola estava pesado, mas o que eu não esperava era ver como a inveja também estava ali, se espalhando como um veneno invisível. As pessoas que eu achava que eram minhas amigas começaram a sussurrar, a olhar pra mim de um jeito estranho. Não eram só olhares de pena; eram olhares de reprovação, de quem queria entender como eu, que estava tão perto dele, podia ser o centro da dor e da atenção.

Ana Beatriz, que sempre teve um jeito de se sentir superior, não perdeu a oportunidade. “Olha lá o Gabriel, parece que tá se achando, né? Agora é a vítima da história. Todo mundo querendo saber o que ele pensa, o que ele sente,” ela disse, rindo com um grupo de meninas ao lado. O riso dela era agudo e cortante, como um vidro se quebrando.

A inveja dela era palpável. A forma como ela usava a tragédia para se sentir mais forte, mais relevante, me irritava. Como se a dor dos outros fosse uma chance pra ela se sobressair. Mas isso era a quebrada, não? A luta não era só contra o sistema, mas também contra as sombras que nascem dentro da gente.

Enquanto Ana Beatriz ria, eu sentia uma vontade de gritar. O que ela sabia sobre a minha dor? O que ela sabia sobre perder um amigo, um sonho, uma esperança? O que ela sabia sobre viver todos os dias com o peso da culpa, como se eu tivesse feito algo pra evitar o que aconteceu? A raiva fervia em mim, mas eu sabia que gritar só daria mais força à inveja dela.

A aula passou, mas eu mal ouvi as palavras do professor. O que importava, realmente, quando a vida lá fora se despedaçava? O mundo continuava girando, indiferente ao que acontecia dentro da gente. Mas, ao mesmo tempo, eu não conseguia ignorar a percepção de que algumas pessoas se alimentavam da dor alheia.

Quando a campainha soou, decidi sair da sala antes que Ana Beatriz tivesse a chance de me atacar de novo. Eu precisava de ar. Eu precisava me afastar daquele lugar, mesmo que fosse só por alguns minutos. A saída da escola levava ao beco onde costumávamos jogar. O sol brilhava, mas o calor não era nada comparado ao frio que se instalava no meu coração.

No beco, encontrei Davi sentado na borda de um muro, com o olhar fixo no chão. “E aí, mano,” eu disse, tentando puxar conversa. Mas ele não parecia ouvir. A dor que eu sentia era a mesma que a dele, e isso me dava uma pequena esperança. Talvez juntos a gente pudesse encontrar um jeito de lidar com tudo isso.

“É foda, né?” ele finalmente disse, quebrando o silêncio. “A gente perde alguém e a escola vira um circo. Parece que todo mundo quer um pedaço da nossa dor, como se isso fosse um show. E quem tá sofrendo de verdade? Ninguém tá nem aí.”

“Exato,” concordei. “E essa inveja... não consigo entender como pode existir. Ana Beatriz tá se aproveitando da situação, como se isso fosse uma oportunidade pra ela brilhar. Enquanto isso, a gente tá aqui, tentando sobreviver.”

Davi assentiu, com um olhar distante. “A gente tem que lutar. Lucas não pode ser só mais uma estatística. Ele merece que a gente faça algo, não que fiquemos aqui sendo a plateia da dor.”

Aquelas palavras acenderam uma chama dentro de mim. Eu não queria que Lucas fosse esquecido. Eu não queria que o sistema continuasse a esmagar a gente, e eu não queria que a inveja das pessoas tirasse o que era sagrado.

Aquela sombra que eu sentia dentro da escola, a sombra da inveja, era apenas um reflexo do medo que todos nós carregávamos. Medo de ser invisível, de ser esquecido, de que a dor alheia não importasse. E era isso que nos tornava vulneráveis. Se a gente não se unisse, se a gente não lutasse contra isso, essa sombra ia nos engolir.

Decidi que precisava falar com o pessoal da quebrada, com quem realmente se importava. Precisava que todos soubessem que não estávamos sozinhos nessa luta. Se a escola se tornasse um campo de batalha, que fosse por algo que realmente importasse. Lucas merecia isso.

“Vamos fazer algo, Davi. Vamos reunir a galera, conversar sobre o que aconteceu, e quem sabe a gente pode organizar alguma coisa, uma marcha, um ato. Precisamos mostrar que a gente não vai se calar,” eu disse, com a determinação crescendo dentro de mim.

Ele olhou pra mim, e pela primeira vez em dias, vi um brilho de esperança nos olhos dele. “Tô dentro, mano. Lucas não vai ser esquecido. Vamos fazer barulho. E a inveja de quem não entende, que se dane.”

E ali, no beco da escola, prometemos que não seríamos apenas espectadores da nossa dor. Decidimos que a sombra da inveja não ia nos parar. O sistema podia tentar nos calar, mas juntos, éramos mais fortes. Juntos, éramos a voz que não seria esquecida.

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