A alma guarda o que a mente tenta esquecer

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Letícia:

Eu sempre acreditei que a memória é um lugar complicado. Às vezes, ela pode ser um abrigo quente, um espaço onde guardamos risadas, abraços e amores. Mas, em outras ocasiões, ela se torna um labirinto escuro, onde as dores, os medos e as frustrações se escondem nas sombras, prontos para nos pegar desprevenidos. Agora, no meio dessa crise na favela, me pergunto se a alma guarda o que a mente tenta esquecer. Porque, neste momento, parecia que todas as memórias dolorosas estavam ressurgindo, querendo me lembrar de tudo o que já havia enfrentado.

Olhei ao redor da quadra onde nos reuníamos. Os rostos dos meus amigos estavam marcados pela ansiedade. Gabriel, com seu jeito confiante, tentava manter todos motivados. Tiago estava tenso, e eu podia ver a preocupação em seus olhos. A tensão era palpável, como se a própria favela estivesse segurando a respiração.

“Precisamos ser fortes”, eu disse, tomando coragem para falar. “Mas também precisamos lembrar quem somos. Não podemos deixar que o medo nos controle. Lembram-se do que enfrentamos juntos? Cada um de nós carrega histórias que nos moldaram, e é isso que nos dá força. Devemos usar nosso passado como uma arma, não como um fardo.”

Todos assentiram, e eu percebi que as memórias que tentávamos enterrar estavam voltando para nos guiar. A infância difícil, as perdas que tivemos que suportar, as batalhas que já vencemos. Eram as cicatrizes que nos lembravam que já sobrevivemos a muito, e que a favela, com toda sua dor e beleza, era parte de quem éramos.

“Lembrem-se do que aconteceu com o Davi”, continuei, e a menção do nosso amigo trouxe um silêncio pesado. Davi sempre foi o coração da nossa comunidade. Ele havia lutado contra a opressão, mas a vida o havia golpeado de maneiras que a maioria não conseguia imaginar. Quando ele foi preso injustamente, a dor que sentimos foi como uma facada no peito. Era como se estivéssemos todos presos com ele, e a favela sentiu a falta de sua presença vibrante.

“Não podemos deixar que isso aconteça de novo. Temos que lutar por ele e por todos que já sofreram por causa de injustiças”, disse Gabriel, e sua determinação começou a contagiar o grupo. A lembrança de Davi e das injustiças que ele enfrentou nos uniu ainda mais.

A realidade da favela não era apenas sobre sobrevivência; era sobre luta e resiliência. O medo era uma sombra que sempre nos seguia, mas nós éramos mais do que nossos medos. Cada um de nós era uma parte de um todo, e juntos éramos uma força poderosa.

“Vamos fazer uma lista de todas as coisas que precisamos. Precisamos de comida, suprimentos e, acima de tudo, informação”, disse Tiago. A ideia de planejar nos deu um foco. Começamos a listar tudo o que precisávamos, mas também a relembrar quem éramos.

Aquela noite, a quadra se transformou em um espaço de estratégia e memória. Ao falarmos sobre o que precisávamos, cada um trouxe suas próprias experiências, suas próprias cicatrizes. Ouvíamos histórias de como as barreiras eram constantemente erguidas contra nós, mas também celebrávamos as pequenas vitórias que nos faziam acreditar que éramos capazes de mudar nosso destino.

E então, em meio a discussões e risadas nervosas, eu percebi que estávamos criando um novo tipo de memória. Não uma memória de dor e sofrimento, mas uma memória de luta e resistência. Essa nova memória seria a que nos impulsionaria a agir, a enfrentar a tempestade que se aproximava.

“Não se esqueçam, a alma guarda o que a mente tenta esquecer”, eu disse, sentindo as palavras saírem como um sussurro profundo. Cada um de nós guardava uma história, uma dor, mas também uma esperança que não podia ser apagada. A luta pela favela não era apenas uma luta por um território; era uma luta pela dignidade de cada um de nós, uma luta para que nossas vozes fossem ouvidas, para que nossas histórias fossem contadas.

Quando finalmente nos despedimos, um sentimento de determinação nos envolveu. Estávamos prontos para enfrentar o que viesse, e, juntos, éramos imparáveis. O que quer que a vida nos reservasse, saberíamos que não estávamos sozinhos. Nossa memória, mesmo as mais dolorosas, agora se tornava nossa aliada, e a alma da favela pulsava mais forte do que nunca.

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