Que Deus Me Guarde, Pois Eu Sei Que Ele Não É Neutro

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Gabriel:

A noite caiu sobre a quebrada como um manto pesado. As luzes fracas dos postes piscavam como se hesitassem em iluminar a realidade crua que nos cercava. Era como se cada sombra contasse uma história, uma luta, uma dor. Enquanto caminhava pelas ruas, não pude deixar de sentir que Deus, de alguma forma, sempre estava observando. Mas, ao contrário do que muitos acreditam, eu sabia que Ele não era neutro.

A vida na favela não me permitia ignorar as injustiças. Ouvia sempre os mais velhos dizendo: “Deus está contigo, filho.” Mas, com o tempo, percebi que essa proteção não significava que Ele ficaria em silêncio enquanto o sofrimento e a desigualdade predominavam. A verdade é que, em meio a tantas dores, eu questionava: onde estava Deus quando as balas faziam eco nas vielas? Onde estava Ele quando a fome e a miséria eram as únicas certezas na vida de tantos?

“Ô, mano! Cê tá viajando?” disse o Marco, que caminhava ao meu lado. Ele notou minha expressão pensativa e resolveu puxar conversa. “Qual é a sua, sempre nessa vibe de pensar demais?” Ele sorria, mas percebi que ele também carregava suas próprias inquietações. Todos nós carregávamos.

“Só tentando entender como a vida funciona, tá ligado?” respondi, olhando para o céu estrelado. “É complicado achar que a gente vive numa guerra sem fim e que, de algum jeito, Deus tá aqui vendo tudo. Como se não tivesse nada a fazer.”

Marco balançou a cabeça, como se concordasse. “É foda, mano. Mas eu acho que Deus tá no nosso corre, na nossa resistência. O problema é que a gente tem que fazer a nossa parte, tá ligado?” Ele tinha razão. O que adianta esperar por milagres se, na verdade, somos nós que precisamos agir?

Enquanto caminhávamos, o cheiro de fumaça de um churrasco começava a invadir o ar. Era uma festa improvisada em meio à agonia. Na favela, o povo sempre encontra um jeito de celebrar, mesmo em meio ao caos. “Vamo lá comer, Gabriel. Se a gente não aproveitar os momentos bons, a vida passa e a gente nem percebe,” Marco disse, puxando-me em direção ao grupo.

Chegamos ao local, e logo nos deparamos com risadas e conversas animadas. A música alta, o batuque do funk e as vozes se entrelaçavam, criando uma atmosfera que, por um instante, esquecia a dureza da realidade. A comida estava boa, e os risos eram genuínos, mas, no fundo, eu sabia que a vida não era apenas um festim.

“É, Deus tá aqui, mas a gente também tem que lembrar que Ele não é neutro,” eu disse, enquanto mordia um pedaço de carne. “A gente precisa lutar pelo que é certo, fazer a diferença na quebrada.” A conversa tomou um rumo mais sério, e as palavras flutuavam entre as taças de bebida.

“Isso é verdade, mano. A favela precisa de vozes, de resistência. Não dá pra ficar calado enquanto a vida continua levando nossos irmãos, nossas irmãs,” Marco concordou, agora com um tom mais intenso na voz. “Se a gente não se unir, vai ser mais um capítulo de dor e sofrimento. É a realidade que vivemos.”

Enquanto a noite avançava, percebi que a verdade não estava apenas nas festas, nas risadas ou na música. A vida na favela era um jogo constante de esperanças e desilusões, e, em meio a tudo isso, era preciso encontrar um propósito. “A gente precisa estar atento, sempre pronto pra lutar. Não só por nós, mas por todos que não têm voz. Que Deus me guarde, pois eu sei que Ele não é neutro.”

A festa seguiu, mas a consciência da luta era palpável. Sabíamos que o amanhã poderia trazer mais desafios, mais lágrimas. Mas a certeza de que, juntos, poderíamos resistir e que a força da comunidade sempre prevaleceria nos dava ânimo.

Lá fora, as estrelas brilhavam, e naquele momento, cada um de nós era parte de algo maior. Sabíamos que o caminho era difícil, mas éramos homens e mulheres de coragem, e juntos, a favela ressoava como um eco de resistência e esperança. Não éramos apenas sobreviventes; éramos guerreiros.

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