Nego Drama - Tenta Ver e Não Vê Nada

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A neblina naquela manhã parecia pesada, como se o mundo estivesse coberto por um véu de incerteza. Meus olhos buscavam respostas, mas tudo que eu via era uma escuridão densa, um vácuo onde as coisas deveriam fazer sentido, mas não faziam. Era como se o mundo inteiro estivesse nos cegando, mantendo-nos na ignorância, tentando nos fazer acreditar que o que vivíamos era normal, que as feridas eram naturais. Era o Nego Drama, mais uma vez nos engolindo, nos puxando para dentro do seu ciclo vicioso.

Tentei ver, tentei enxergar um futuro, mas nada além de sombras e promessas vazias se desenhava diante de mim. As conversas na escola, os olhares carregados de julgamento, os risos abafados — tudo isso criava uma cortina de fumaça que ofuscava qualquer esperança de uma vida diferente. O sistema era perfeito em nos silenciar, em nos cegar para a realidade que nos aprisionava.

Lucas costumava dizer que viver nesse país, nessa realidade, era como ser jogado no fundo de um poço sem corda pra subir. Ele falava disso nos momentos mais sombrios, quando tudo parecia desmoronar. E agora, sem ele, a metáfora fazia mais sentido do que nunca. Cada tentativa de escalar, cada esforço pra sair dessa, era frustrado pela falta de ferramentas, pela cegueira que o sistema impunha. Tenta ver e não vê nada. Era assim que estávamos vivendo.

A escola, que deveria ser um lugar de aprendizado e crescimento, se tornava cada vez mais uma arena de batalha. Não só contra o racismo, mas contra a invisibilidade que eles tentavam nos impor. Davi e eu éramos uma minoria que, ao mesmo tempo, estava sempre à vista de todos, mas nunca realmente enxergada. E isso era o mais cruel — ser visto, mas não ser notado, como se nossas vidas fossem apenas pano de fundo para a narrativa de outros.

Naquela semana, algo estourou de novo. Durante uma apresentação de trabalho sobre cultura afro-brasileira, Ana Beatriz, que se dizia neutra, comentou que “algumas tradições africanas são interessantes, mas não dá pra negar que o Brasil tem uma cultura própria que é mais avançada”. Aquelas palavras ecoaram pela sala como um tapa na cara. Era isso. Tenta ver e não vê nada. Ana era incapaz de enxergar além do privilégio dela, incapaz de entender que o Brasil que ela conhecia era construído sobre as costas do nosso sofrimento, da nossa cultura marginalizada e violentada.

Senti o sangue ferver, o coração acelerado, a garganta travada. Eu queria gritar, queria perguntar como ela podia ser tão cega. Como alguém podia olhar para a nossa realidade, para nossa história, e ainda assim não ver nada? Era essa a essência do Nego Drama. A dor de ser ignorado, a dor de viver em um mundo que finge não perceber o que a gente carrega todos os dias.

Davi me olhou, e percebi que ele sentia o mesmo. O silêncio, naquele momento, falava mais do que qualquer coisa que pudéssemos dizer. Não valia a pena tentar argumentar com alguém que já havia decidido que nossa luta não era importante, que nossas vozes eram ruído de fundo. Mas mesmo assim, por dentro, algo me corroía. Eu não conseguia mais aceitar aquela cegueira voluntária. A chaga que carregávamos já estava aberta há muito tempo, e ignorá-la era só jogar mais sal nela.

Depois da aula, nós dois ficamos na escadaria do pátio, onde sempre discutíamos sobre a vida, sobre o mundo que parecia nos ignorar. “Ela realmente acha que sabe de alguma coisa, né?” disse Davi, ainda incrédulo. “Cultura própria? O Brasil tem cultura própria porque a nossa cultura foi roubada, misturada e distorcida!”

“Ela tenta ver, mas não vê nada, Davi,” respondi, sentindo o peso das palavras. “É como se estivéssemos invisíveis. E quando enxergam, é só pra distorcer.”

Davi suspirou e olhou para o céu, como se esperasse encontrar alguma resposta ali. “A gente tá preso nesse ciclo, Gabriel. E quanto mais tenta sair, mais eles apertam o nó.”

Ele tinha razão. A sociedade estava sempre disposta a nos manter no lugar, nos cegando para as possibilidades, para qualquer chance de mudança. Era como uma venda invisível que colocavam em nossos olhos, um esforço coletivo para nos manter no escuro. A verdade era dolorosa demais para eles admitirem, então preferiam ignorar. E quando nós tentávamos apontar isso, éramos os problemáticos, os revoltados, os que “não se encaixavam”.

Mas eu estava cansado de tentar me encaixar. Cansado de ser a exceção, de ser aquele que tem que provar seu valor a todo momento. Lucas estava certo. O poço era profundo, mas não era insuperável. E eu, Davi, todos nós, tínhamos que continuar tentando, mesmo que o mundo ao nosso redor preferisse nos cegar para as possibilidades.

Era isso que o Nego Drama era: uma luta constante para ser visto, para ser reconhecido. Mesmo quando o sistema tenta fazer com que a gente não veja nada. Mesmo quando o véu da ignorância tenta cobrir tudo. A cura, talvez, estivesse em continuar gritando, em continuar rompendo essa escuridão, até que um dia, finalmente, eles fossem forçados a nos enxergar.

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