Vi um Pretinho, Seu Caderno Era um Fuzil

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Capítulo 59: Vi um Pretinho, Seu Caderno Era um Fuzil

A esquina estava cheia de vida, como sempre, com as vozes da favela ecoando pelas ruas. As crianças jogavam bola, os vendedores gritavam suas ofertas e os jovens se reuniam em grupos, buscando um jeito de passar o tempo. Mas entre toda essa agitação, um garoto chamou minha atenção. Ele estava sentado no meio-fio, concentrado, com um caderno nas mãos. Ao olhar mais de perto, percebi que aquele garoto era Gabriel, um pretinho que sempre passava por ali, mas que, por alguma razão, parecia mais focado do que o normal.

De onde eu estava, pude ver que o caderno de Gabriel não era apenas um simples caderno. Para ele, naquele momento, era uma arma. A forma como ele escrevia com tanta intensidade me fez lembrar de quando eu era jovem e sonhava em ser alguém. Mas o que eu vi em Gabriel era algo diferente, uma urgência que vinha do fundo de sua alma. “Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil,” eu murmurei para mim mesmo, enquanto observava aquele menino transformar suas palavras em balas de esperança.

Os mais velhos na favela costumavam dizer que o conhecimento era uma arma poderosa, uma forma de resistência. Para Gabriel, cada palavra que ele escrevia era uma forma de desafiar o mundo que o cercava. Eu me aproximei, curioso, querendo entender o que se passava na mente daquele garoto que parecia carregar o peso do mundo nas costas.

“E aí, mano,” eu disse, tentando quebrar o gelo. Ele levantou os olhos, um brilho intenso neles, como se estivesse em uma missão. “Tô escrevendo sobre a vida aqui na quebrada,” ele respondeu, e eu pude ouvir a paixão em sua voz. “É tipo um livro, mas não é só isso. É pra mostrar que a gente é forte, mesmo com tudo que rola.”

Gabriel tinha apenas quatorze anos, mas a sabedoria que emanava dele era de alguém que já havia vivido muito mais. Eu vi a dor e a luta refletidas em seu olhar, e percebi que, para ele, escrever era uma forma de lutar. Enquanto outros da sua idade buscavam se enturmar com os amigos ou se distrair com coisas passageiras, ele optava por enfrentar a realidade e usá-la como combustível.

“Mano, a favela pode ser um lugar difícil, mas também é cheia de história,” eu disse, sentando-me ao seu lado. “O que você tá escrevendo pode mudar a perspectiva de muita gente.” Gabriel sorriu, mas eu percebi uma sombra passar por seu rosto. Ele sabia que a vida era mais complicada do que as palavras podiam expressar.

“Às vezes, eu sinto que ninguém liga pra gente, sabe?” ele disse, olhando para o caderno. “Mas eu quero que eles vejam que a gente tem voz, que temos sonhos. Se meu caderno é um fuzil, então eu vou usar ele pra me defender.” A determinação na voz dele era palpável. Era como se ele estivesse dizendo que mesmo com todas as dificuldades, ainda havia espaço para a luta.

Eu fiquei em silêncio por um momento, refletindo sobre a força daquele garoto. “A vida na favela não é só sobre sobreviver,” pensei, “mas também sobre resistir.” Gabriel estava fazendo exatamente isso: resistindo e lutando contra o que a vida lhe impunha, e ele não estava sozinho. Naquele instante, percebi que, se uma nova geração como a dele se levantasse com palavras ao invés de armas, a mudança poderia ser possível.

“Fica firme, moleque,” eu disse, encorajando-o. “Continua escrevendo, porque a sua história é importante.” Gabriel acenou com a cabeça, e em seu olhar, vi uma chama de esperança que não se apagaria tão facilmente.

Naquele dia, enquanto eu observava Gabriel lutar com seu caderno como se fosse um fuzil, percebi que a verdadeira força não estava apenas na violência ou na bravura física, mas na capacidade de sonhar e transformar esses sonhos em palavras que poderiam ecoar através das gerações. E assim, com o calor do sol queimando nossas peles e a vida pulsando ao nosso redor, eu sabia que a luta por uma vida digna continuaria, com ou sem a paz.

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