Velas

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As velas tremulavam na escuridão da viela, como pequenas estrelas perdidas no meio do breu. O vento fraco fazia as chamas dançarem, mas não era forte o suficiente para apagá-las. Aquela luz frágil parecia simbolizar algo maior, algo que todos ali compreendiam sem precisar dizer. No meio do caos, as velas eram um lembrete de que, apesar de tudo, ainda havia vida, ainda havia memória.

A favela, naquela noite, estava em luto. Mais um jovem tinha sido levado pela violência, mais um nome inscrito na lista interminável de mortos que ecoavam pelas vielas. Ao redor das velas, rostos cansados se juntavam em silêncio. Não havia gritos, não havia raiva. Somente o som das respirações pesadas e o farfalhar das roupas ao vento. Todos ali sabiam o que aquilo significava: mais uma mãe choraria a perda de seu filho; mais um amigo carregaria o peso da ausência; mais uma vida apagada, tão rapidamente quanto aquelas velas poderiam ser sopradas pelo vento.

Eu estava ali, observando, com uma vela na mão. O calor da chama esquentava meus dedos, mas não trazia conforto. Naquela escuridão, me senti parte de algo maior. Era como se aquelas luzes vacilantes fossem um reflexo da nossa luta, da nossa existência precária. A qualquer momento, tudo podia acabar. O destino da favela era tão incerto quanto a chama de uma vela acesa em uma noite ventosa.

Lembro-me da primeira vez que vi uma vigília assim. Eu era pequeno, não tinha mais que oito anos. Minha mãe me levou pela mão até o fim da rua, onde havia uma roda de pessoas, todas com velas na mão. No centro, uma fotografia maltratada pelo tempo: o rosto de um rapaz que eu não conhecia, mas que todos ali lembravam. Ele tinha sido assassinado por estar no lugar errado, na hora errada. Aquela vigília era para ele, e o silêncio entre as pessoas era tão pesado que parecia que ninguém ali conseguia respirar.

Agora, anos depois, eu estava na mesma posição. Mais um rosto jovem se foi. Desta vez, era Davi, o moleque que cresceu comigo, sempre rindo, sempre cheio de vida. Seu sorriso fácil, seus cachos que balançavam quando ele corria pelas vielas jogando futebol, o som de sua risada ainda ecoava na minha mente. Mas ali, naquele momento, só restava o silêncio e a luz trêmula das velas.

No começo, eu não acreditava que ele se fora. Como poderia ser? Davi era o tipo de pessoa que você nunca imaginava ver caído, nunca pensava em perder. Ele tinha sonhos, mesmo sabendo que a realidade daqui era impiedosa. Queria sair, queria mudar de vida, mas a favela não perdoa. A favela cobra. E quando ela cobra, é definitivo.

Olhando para aquelas velas, cada chama parecia carregar uma história. Cada luz era alguém que tinha partido, alguém que deixou um buraco na vida de quem ficou. O brilho era bonito, sim, mas também era triste, porque cada vela acesa significava uma perda, uma vida ceifada. Era como se a favela tivesse uma maneira particular de guardar seus mortos, não em túmulos de mármore, mas em memórias de velas acesas nas esquinas.

Alguém começou a cantar uma música triste, uma prece sussurrada no vento. Era uma tentativa de buscar conforto, de encontrar um pouco de paz em meio à dor. Mas eu sabia, e todos ali sabiam, que as velas logo se apagariam. O vento, a chuva, a própria noite consumiria aquelas chamas, assim como a violência consumia nossas vidas. Tudo aqui era passageiro, tudo aqui era frágil.

Eu observei as velas queimarem até o fim. Fiquei lá até o último fio de luz se apagar, até que a escuridão engolisse a rua por completo. E, quando a última chama morreu, senti um vazio tomar conta de mim. Era como se, ao apagar da vela, uma parte de Davi, uma parte de todos nós, tivesse desaparecido para sempre.

Na favela, as velas sempre seriam acesas, e as chamas sempre se apagariam. Mas enquanto brilhassem, por mais breve que fosse, elas continuariam a carregar as memórias daqueles que se foram, mesmo que a luz não durasse. O luto persistia, mas a luta também.

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