Nego drama: Cabelo Crespo e a Pele Escura

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O sol mal havia nascido, mas as ruas da quebrada já fervilhavam de vida. Era um daqueles dias em que o calor não dava trégua, e a sensação de opressão, física e emocional, pairava no ar. O Nego Drama era real, mais do que nunca, e ele se manifestava em cada rosto, cada olhar, cada suspiro. Na pele escura e no cabelo crespo que carregavam, com orgulho e dor, as marcas de séculos de resistência.

Eu caminhava pela viela, os passos pesados como o peso da minha consciência. A luta pela memória de Lucas continuava, mas junto com ela, a luta por nós mesmos. Eu, Davi, e todos que pareciam condenados a viver sob o estigma de sermos “o problema”. A gente não precisava explicar isso em palavras, bastava olhar ao redor. Cada esquina contava uma história que o resto do mundo insistia em não ver.

No colégio, o dia era como qualquer outro, exceto que hoje as conversas giravam em torno de um novo assunto. Não era a nossa marcha, nem a luta pela justiça para Lucas. Era algo que cutucava ainda mais fundo. Um dos alunos, de família rica e pele clara, havia soltado, sem nenhum pudor, uma piada racista. Ele disse, com aquele sorriso de quem acredita que o mundo é dele, algo como “seu cabelo parece uma esponja de aço”. Ele riu, e os outros riram junto. Ninguém parecia perceber o veneno naquele comentário. Ou talvez, e essa era a pior parte, eles perceberam e escolheram ignorar.

Davi, que estava do meu lado, ficou tenso. O cabelo dele era crespo, negro como a noite, e ele sempre o usava com orgulho. Mas eu sabia que aquele comentário o havia ferido mais do que ele queria admitir.

"Deixa pra lá, Gabriel," ele disse, com a voz baixa, mas cheia de raiva contida. "Não adianta."

Mas não era algo que eu conseguia deixar passar. O Nego Drama corria nas nossas veias, e naquela sala de aula, senti o peso de gerações de resistência pulsando dentro de mim. A pele escura, o cabelo crespo, eram mais do que uma identidade visual; eram símbolos de uma luta silenciosa que a gente travava todos os dias. A luta de ser notado, de ser respeitado, de ser ouvido.

Quando o intervalo chegou, eu chamei Davi para fora. A gente se sentou na escadaria de concreto que dava para o pátio da escola, a sombra de um muro nos protegendo do sol forte.

"Mano, não dá pra ignorar isso," eu disse, encarando o chão, tentando conter a fúria que ardia no meu peito. "Eles acham que podem dizer qualquer coisa, que nossa cor, nosso cabelo, nossa história é piada pra eles."

Davi ficou em silêncio por um tempo, mas eu via a luta interna em seus olhos. "E o que a gente faz, então?" ele perguntou, finalmente. "Brigar com cada um que pensa assim? A gente ia passar a vida lutando."

Mas era isso que o Nego Drama era. Era uma luta constante. Era acordar todo dia sabendo que, pelo simples fato de sermos quem somos, já estaríamos em desvantagem. “Mas essa luta não é só nossa,” eu disse. “A gente tem que fazer eles enxergarem isso. Fazer com que saibam que a gente não vai mais aceitar esse tipo de merda.”

Foi quando Ana Beatriz apareceu. Ela desceu as escadas com aquele jeito dela, a cabeça erguida como se o mundo girasse ao redor de si. Ela nos olhou por um momento, como se tentasse entender o que se passava, mas no fundo, era óbvio que ela não entendia. Não poderia entender.

"Vocês parecem tensos," ela disse, casualmente, como se o racismo fosse só mais um tópico de conversa. "Sei que algumas pessoas às vezes passam dos limites, mas, sério, vocês não podem deixar essas coisas te afetarem assim."

Fiquei em silêncio por um segundo, tentando encontrar as palavras. Mas Davi, que normalmente era o mais calmo de nós dois, explodiu. "Você não entende nada, Ana! Isso não é 'algumas pessoas passando dos limites'. Isso é a nossa vida, todo dia! Você acha que pode falar de racismo como se fosse um incômodo qualquer, mas a gente vive isso. A gente sente isso na pele!"

Ela ficou surpresa, sem palavras, o rosto dela corando levemente de embaraço. "Eu só quis ajudar..." disse, com a voz baixa.

"Ajuda não é diminuir o que a gente sente," Davi continuou. "Ajuda é entender que o racismo é um sistema. Que a cor da nossa pele e o nosso cabelo são motivo de dor e desprezo pra muita gente. E você nunca vai saber o que é isso."

Ana Beatriz ficou quieta e saiu logo depois, mas o impacto do que Davi disse ficou no ar. Aquela conversa me fez perceber que a nossa luta, o nosso Nego Drama, não era algo que qualquer um pudesse entender. Mas também não era algo que a gente precisava explicar a todos. A gente só precisava continuar lutando, por nós mesmos, por Lucas, por cada um que já sentiu a pressão da pele escura e o julgamento que vinha com ela.

No final do dia, Davi e eu voltamos pra casa, caminhando pelas ruas que conhecíamos tão bem. O sol se pondo lançava sombras longas sobre o asfalto, e, por um momento, tudo parecia calmo.

"Você acha que algum dia as coisas mudam?" Davi perguntou, com o olhar distante.

"Não sei," respondi, sinceramente. "Mas eu sei que enquanto a gente continuar lutando, a mudança vai estar sempre ao nosso alcance."

E naquele silêncio, enquanto o mundo continuava a girar, carregávamos o peso e a beleza do Nego Drama. Um fardo que era nosso, mas que também nos dava força. Força para seguir em frente, para lutar contra cada palavra venenosa, cada gesto de desprezo, e para lembrar que, apesar de tudo, nossa pele e nosso cabelo eram coroas que jamais poderiam ser retiradas.

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