Cortiços

0 0 0
                                    


---

Os cortiços eram um outro tipo de labirinto. Se as vielas da favela eram traiçoeiras, os cortiços eram uma prisão disfarçada de abrigo. As paredes mofadas e as portas rangentes guardavam histórias que a cidade grande preferia esquecer. Ali, as pessoas viviam amontoadas, dividindo o pouco espaço que tinham com o peso de suas dores, seus medos e suas esperanças quebradas.

Eu e Richard caminhávamos em silêncio, lado a lado, com a tensão entre nós quase palpável. Depois de resgatá-lo das sombras dos prédios abandonados, não trocamos muitas palavras. Ele estava perdido dentro de si mesmo, os olhos vazios, como se a vida que conhecíamos tivesse ficado para trás. Mas agora, eu precisava encontrar um lugar para ele — e o cortiço de Dona Neide era o único lugar seguro o suficiente naquela parte da cidade.

Chegamos à rua dos cortiços, uma linha de casas coladas umas nas outras, tão próximas que parecia impossível respirar. As fachadas eram velhas, desbotadas, algumas cobertas por camadas de grafite que tentavam dar cor a um cenário cinzento. As janelas tinham grades, não para impedir quem estava dentro de sair, mas para manter do lado de fora quem pudesse trazer mais miséria.

“É aqui,” eu disse, apontando para o portão de metal enferrujado que marcava a entrada do cortiço de Dona Neide. Ela era uma mulher dura, mas justa. Todos na favela sabiam que, se você conseguisse um quarto com ela, ao menos teria um teto sobre sua cabeça e um pouco de paz, mesmo que temporária.

Richard olhou para o portão, hesitando. Ele sabia o que aquilo significava. Cortiços eram o fim da linha para muitos. Era o lugar para quem não tinha mais para onde ir. Eu via a luta interna dele, o orgulho ferido. Mas não havia escolha. Não para ele. Não para nós.

“A gente entra?” perguntei, quebrando o silêncio.

Ele assentiu devagar, e juntos empurramos o portão que rangeu em protesto, revelando um pátio apertado, cercado por fileiras de portas que levavam aos pequenos cômodos onde as pessoas viviam espremidas entre sonhos desfeitos e a realidade brutal.

Dona Neide estava sentada em sua cadeira de plástico, perto da entrada. Sua pele negra e enrugada, marcada pelo tempo, brilhava sob a luz fraca de uma lâmpada velha. Ela ergueu os olhos quando nos viu, seus olhos pequenos e duros como pedra.

“Quem é o novo?” ela perguntou, com uma voz que parecia atravessar décadas de luta e resistência.

“É o Richard,” respondi, tentando manter a voz firme. “Ele precisa de um lugar pra ficar.”

Ela nos observou por um momento, avaliando Richard de cima a baixo. Não era só uma questão de espaço. Nos cortiços, a confiança era a moeda mais preciosa. Quem entrava tinha que ser alguém que não traria mais problemas. E no estado em que Richard estava, com a alma despedaçada, era difícil prever o que poderia acontecer.

“Um quarto vago,” ela disse finalmente, apontando para uma porta no fundo do corredor. “Paga por semana. Não quero saber de confusão.”

Richard assentiu silenciosamente. Eu podia ver no seu rosto o peso do que aquilo significava. Ele, que sempre sonhara em sair da favela, agora estava sendo sugado para o coração dela. Mas naquele momento, não havia outra opção. Ele entrou no quarto sem dizer nada, desaparecendo por trás da porta de madeira gasta.

Dona Neide me chamou com um gesto de cabeça, e eu me aproximei.

“Esse menino… ele tem que tomar cuidado,” ela disse em tom baixo, mas firme. “Gente como ele, que carrega esse tipo de olhar, não dura muito por aqui.”

Eu sabia o que ela queria dizer. Richard estava quebrado por dentro, e os cortiços eram um lugar onde a fraqueza podia ser fatal. Ali, ninguém tinha tempo para curar suas feridas. Era sobreviver ou ser engolido.

"Vou cuidar dele," prometi, embora soubesse que aquela promessa seria difícil de cumprir. A periferia já havia tomado tanto de nós que, às vezes, parecia impossível proteger alguém do inevitável.

Deixei o cortiço com a mente pesada, os pensamentos rodando em círculos. As ruas estavam escuras, e as luzes dos postes mal iluminavam os becos que se entrelaçavam como veias abertas na pele da cidade. As vozes da favela ecoavam ao longe, misturadas ao som de passos apressados e conversas abafadas.

Os cortiços eram um refúgio temporário, mas também eram uma armadilha. Quem entrava ali geralmente nunca mais saía. E eu temia que Richard estivesse indo por esse caminho, cada vez mais fundo, cada vez mais longe de si mesmo.

Enquanto me afastava, uma brisa fria passou pelas ruas, trazendo consigo o cheiro de comida frita e fumaça de cigarro. O barulho das motos continuava ao fundo, o ritmo incessante da vida na favela. Mas naquele momento, eu só conseguia pensar em Richard, sozinho naquele quarto escuro, lutando contra os próprios demônios.

As vielas e os cortiços eram parte de nós. Eles nos formavam e nos deformavam. E eu sabia que, para Richard, aquela luta estava apenas começando.

---

Negro DRAMAOnde histórias criam vida. Descubra agora