Vielas

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As vielas eram como labirintos. Quem crescia nelas aprendia a navegar por entre os becos estreitos, as esquinas escuras, os muros pichados que contavam histórias de dor e resistência. Eu sabia que ali, naquela teia de concreto, qualquer passo em falso poderia me custar a vida. Mas naquela noite, a escuridão parecia ainda mais densa, mais carregada de segredos que eu temia desvendar.

A cada curva, a tensão no ar aumentava. As vielas da favela eram cheias de vida, mas também cheias de sombras. Naquele silêncio, eu sentia que não estava sozinho. As paredes pareciam sussurrar as histórias de quem já havia passado por ali e nunca mais voltado. O medo caminhava ao meu lado, mas eu não podia parar. Richard estava em algum lugar naquela rede de ruas, e eu tinha que encontrá-lo antes que fosse tarde demais.

O caminho até os prédios abandonados era o mais perigoso. A área perto da ponte era território de gente que não tinha nada a perder, gente que vivia no limite entre a sobrevivência e a autodestruição. Aquele lugar era conhecido por abrigar negócios escusos, acordos silenciosos e o som abafado de tiros que raramente ecoavam além das vielas.

Enquanto eu avançava, o som de motos quebrava o silêncio da noite, seguido por risadas abafadas. Me escondi atrás de um muro, o coração disparado no peito. Sabia que não podia ser visto ali. Naquelas vielas, qualquer passo fora do ritmo certo podia significar a morte. Eu esperei, observando as motos passarem como fantasmas na escuridão, até que o silêncio voltasse.

Continuei andando, os olhos atentos a qualquer movimento. As luzes da cidade ao longe pareciam um outro mundo, distante e inalcançável. Aqui, nas vielas da periferia, a realidade era outra. Era feita de sobrevivência, de decisões que ninguém deveria ser obrigado a tomar.

Finalmente, cheguei aos prédios abandonados. O lugar era sinistro, cercado por entulho e restos de construções que nunca chegaram a ser finalizadas. As janelas eram buracos negros, como bocas abertas em um grito silencioso. Ali, no escuro, a tensão era palpável. Eu não sabia o que encontraria, mas tinha que continuar.

Parei diante de uma das entradas, a escuridão me engolindo por completo. Era como entrar num outro mundo, um mundo onde as regras eram diferentes. Lá dentro, o cheiro de mofo e abandono era forte, misturado com o odor de fumaça e algo mais que eu preferia não identificar.

De repente, ouvi passos. Meu corpo enrijeceu, o coração quase parando. Me escondi atrás de uma parede caída, respirando fundo, tentando acalmar o medo que gritava dentro de mim. Era Richard? Ou alguém que poderia me matar sem pensar duas vezes?

“Richard?” minha voz saiu baixa, um sussurro quase inaudível.

Nada. Só o silêncio em resposta. Eu continuei, os passos leves, o corpo tenso. O medo já não era um visitante, era um companheiro constante.

Mais à frente, vi uma figura se movendo entre as sombras. Meu coração acelerou. Era ele. Richard. Ele estava ali, mas algo estava errado. Ele não parecia o mesmo. Seu corpo estava arqueado, como se carregasse um peso invisível, sua cabeça baixa. A escuridão quase o engolia por completo, mas eu o reconheci.

“Richard!” chamei de novo, agora mais alto.

Ele se virou lentamente, os olhos vazios, a expressão dura. Não era o Richard que eu conhecia. A favela havia feito com ele o que faz com todos nós: arrancou pedaços, deixou marcas profundas. Mas ele parecia ter perdido algo a mais — talvez a esperança, talvez o medo de se perder completamente.

"Você não devia estar aqui," ele murmurou, a voz rouca e cansada.

Eu me aproximei, sentindo o peso daquela afirmação. Talvez ele estivesse certo. Talvez eu estivesse me metendo em algo que não tinha volta. Mas eu não podia deixá-lo ali. Não podia virar as costas.

"O que aconteceu com você?" perguntei, tentando entender. "Onde você esteve?"

Ele balançou a cabeça, os olhos perdidos nas sombras ao redor. "Aqui... sempre aqui. Não tem pra onde ir."

As vielas haviam engolido Richard. Assim como engolem muitos. Ele estava vivo, mas não inteiro. As vielas da periferia tinham esse poder, de tirar partes das pessoas até que elas se tornassem apenas sombras do que foram um dia.

"Vamos sair daqui," eu disse, segurando seu braço.

Richard hesitou, mas no fundo ele sabia que precisava de ajuda. E, por mais que eu também tivesse medo, sabia que não podia deixá-lo naquele lugar. As vielas já haviam levado muita coisa de nós, mas eu não permitiria que levassem meu amigo também.

Enquanto saíamos daquele prédio sombrio, senti que estávamos deixando para trás mais do que apenas um lugar. Estávamos deixando para trás uma parte de Richard que talvez nunca mais voltasse. Mas, ao menos, ele estava vivo. E isso, naquelas vielas, já era uma vitória.

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