O túmulo, esse lugar frio e silencioso, sempre pareceu tão distante, mas ao mesmo tempo, tão próximo de quem cresce na favela. Desde cedo, a gente aprende a conviver com a morte como parte do cotidiano, como se fosse um vizinho que aparece de vez em quando, sem avisar. No começo, é uma presença sutil, uma sombra que passa de longe, levando alguém que você talvez nem conhecia direito. Mas, com o tempo, ela se aproxima, começa a levar seus amigos, familiares, aqueles que você cresceu junto. E aí, o túmulo deixa de ser uma ideia distante, passa a ser uma realidade.A vida aqui é um fio frágil, sempre à beira de se romper. É como se a favela fosse um cemitério a céu aberto, onde cada esquina, cada beco, carrega histórias de quem não teve a chance de ir além. As cruzes improvisadas nas paredes, os altares feitos de velas e flores murchas, marcam o chão onde alguém caiu. E a gente segue em frente, porque não dá pra parar e lamentar. Se parar, você se perde.
O enterro de Lucas foi o mais pesado. Ele, que sobreviveu à cadeia, não conseguiu escapar da rua. Um acerto de contas que ele nem sequer tinha parte, mas que o alcançou como uma bala perdida. Ele virou estatística, mais um número na lista dos mortos da guerra invisível que o mundo ignora. No dia do enterro, a mãe dele, Dona Rosângela, segurava o caixão como se pudesse impedir que o filho fosse embora. Como se, de alguma forma, a dor dela pudesse trazer ele de volta. Mas não podia. O túmulo esperava, frio e insensível, como sempre.
Ali, em meio ao choro abafado, eu percebi o que o túmulo representa pra gente. Não é só o fim de uma vida, é o fim de sonhos que nunca se realizaram, de promessas que nunca foram cumpridas. É o enterro de todas as possibilidades que aquela pessoa tinha, todas as portas que ela nunca vai abrir. Na favela, o túmulo é o destino de muitos, mas o maior terror é que ele se torne o nosso também.
A realidade é que, para quem nasce aqui, a morte não é o maior medo. O maior medo é a vida não significar nada antes de chegar ao túmulo. Ser apenas mais um, enterrado e esquecido, como se não tivesse passado por esse mundo. Como se a única coisa que restasse fosse uma lápide com um nome e uma data, enquanto o resto se apaga na poeira da história.
Davi sempre dizia que a vida era curta demais pra não deixar uma marca. "A gente tem que ser mais que esses corpos no chão," ele repetia toda vez que alguém caía. Mas, mesmo dizendo isso, eu via nos olhos dele o medo de ser o próximo. O medo de que, no fim, nossa luta, nossa resistência, não fosse suficiente para escapar desse destino.
Eu também tenho esse medo. Tenho medo de que, por mais que eu lute, o túmulo esteja lá, esperando pacientemente. Que, por mais que eu tente construir algo, no final, tudo que restará será o silêncio de uma cova. Porque aqui, onde a violência é rotina e a morte é comum, a sensação de que estamos vivendo em contagem regressiva é real.
Mas, enquanto eu estiver vivo, vou lutar para que, quando o meu túmulo chegar, ele não seja só mais um na multidão. Que, antes de eu ser enterrado, minha vida tenha significado. Que, quando olharem pra trás, vejam mais do que só o corpo de um preto favelado. Que vejam alguém que não se deixou enterrar antes da hora, que lutou contra as grades invisíveis da favela e os muros da sociedade.
A gente vive com a sombra do túmulo, mas o que eu aprendi é que o importante não é o fim. O importante é o que você faz enquanto ainda está de pé, respirando, lutando. Porque, enquanto houver vida, há resistência. E enquanto houver resistência, o túmulo pode esperar.
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Negro DRAMA
Ficción histórica"O Peso do Silêncio" é um romance visceral que mergulha nas profundezas da vida na periferia, inspirado no icônico "Negro Drama" dos Racionais MC's. A história acompanha Gabriel, um jovem negro que luta contra o sistema opressor que já o condenou de...