Capítulo 86: Seu Jogo É Sujo e Eu Não Me Encaixo
As luzes brilhantes da fama começaram a iluminar meu caminho, mas, como eu sempre soube, elas também traziam sombras. Era uma tarde quente em São Paulo quando recebi uma proposta que me fez parar e refletir. Era de uma gravadora grande, com a promessa de um contrato que poderia mudar minha vida para sempre. Mas havia uma condição: eu precisava apagar minha história, a verdade que vinha da favela, e moldar uma nova narrativa que se encaixasse no que eles achavam que o público queria ouvir.
"Gabriel, você é talentoso, e todos estão de olho em você. Mas para realmente estourar, precisa se distanciar dessa imagem de garoto da quebrada", disse o executivo, com um sorriso que escondia mais intenções do que eu gostaria de acreditar. "Que tal falarmos sobre suas origens apenas em entrevistas? Podemos criar uma imagem mais 'clean', algo que venda mais. Pense em seu futuro, nas oportunidades que você pode ter."
Ouvindo essas palavras, senti um frio na barriga. "Seu jogo é sujo, e eu não me encaixo", pensei, mas mantive a calma. A verdade é que minha história era a única coisa que me fazia ser quem eu era. Tudo o que havia passado — os sonhos, as lutas, os amigos que se perderam pelo caminho — eram peças fundamentais do meu eu. Eles queriam que eu deixasse tudo isso para trás, como se nunca tivesse existido.
O convite para essa nova vida soava tentador. A ideia de viver em um lugar que eu nunca poderia imaginar, cercado por luxo e glamour, era sedutora. Mas, por outro lado, estava o peso da realidade. Sabia que não poderia deixar minha família, meus amigos, e, principalmente, a minha comunidade para trás. Como eu poderia olhar nos olhos dos meus parceiros de luta, daqueles que ainda estavam na rua, se eu simplesmente me virasse e dissesse que não era mais um deles?
Naquela noite, enquanto me preparava para dormir, a cabeça fervilhava de pensamentos. A música que estava escrevendo, cada verso e rima, era uma maneira de contar a história de todos nós. Se eu deixasse essa história de lado, estaria traindo não só a mim mesmo, mas a todos que me apoiaram desde o início. Os que ainda lutavam na periferia e buscavam uma voz que representasse suas realidades.
Decidi que precisava de um tempo para pensar. No dia seguinte, fui ao campo de futebol onde cresci. O cheiro da grama, os risos das crianças jogando bola, tudo aquilo me lembrava de onde eu vinha. O campo era um lugar sagrado, onde muitos de nós sonhávamos com um futuro diferente, onde a realidade da favela se misturava com os nossos desejos.
Enquanto caminhava pelo campo, encontrei alguns amigos jogando. Um deles, o Zé, olhou para mim e disse: “E aí, mano, tá sumido. Ouvi uns boatos sobre você e essa parada de gravadora. Tá pensando em dar as costas pra gente?” As palavras dele cortaram como uma faca. Não queria que ele achasse que eu estava me vendendo, que tinha me deixado levar pelas promessas de uma vida fácil.
"Zé, é complicado. Tão querendo que eu mude tudo. Que eu finja que não sou quem eu sou. Mas eu não posso fazer isso. Isso não sou eu", respondi, tentando manter a voz firme, mesmo que a incerteza estivesse dentro de mim.
Ele me olhou nos olhos e disse: "A gente te apoia, mano. Mas não esquece de onde você veio. Fala a verdade na sua música, e se eles não gostarem, que se danem! O que vale é sua história."
Essas palavras ecoaram em minha mente. A música sempre foi meu refúgio, a maneira de expressar tudo que eu sentia, e não poderia deixar que a ambição me cegasse. Então, enquanto olhava para os meninos jogando, tomando coragem, fiz uma promessa a mim mesmo: minha história não seria escondida ou distorcida. Seria contada da maneira que realmente era, sem filtros ou mentiras.
Quando voltei para casa, peguei meu caderno e comecei a escrever. A letra que surgia era um grito de resistência. Eu não era apenas um artista; era um filho da favela, e minha voz não seria silenciada. Meu legado não seria apenas sobre o sucesso, mas sobre a luta, as feridas e a esperança que ainda existia em cada esquina da minha comunidade.
"Eu sou quem sou, e não vou me esconder", escrevi. Com cada palavra, cada verso, eu me lembrava do que realmente importava. No fim, era isso que contava: a verdade, a autenticidade e a luta pela nossa voz.
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Negro DRAMA
Ficção Histórica"O Peso do Silêncio" é um romance visceral que mergulha nas profundezas da vida na periferia, inspirado no icônico "Negro Drama" dos Racionais MC's. A história acompanha Gabriel, um jovem negro que luta contra o sistema opressor que já o condenou de...