Sirenes

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O som da sirene corta o ar, um grito agudo que já se tornou parte da sinfonia da favela. No início, ele causava um arrepio na espinha, uma descarga de adrenalina que percorria o corpo, fazendo as mãos tremerem. Mas com o tempo, o som da sirene se tornou banal, um som de fundo que a gente aprende a ignorar. E, no entanto, cada vez que ela ecoa pelas vielas, traz consigo o prenúncio de que algo está errado, de que mais um corpo foi encontrado, mais uma alma foi perdida.

A sirene nunca chega a tempo para salvar. Ela chega depois, quando o estrago já foi feito, quando o sangue já mancha o chão e as lágrimas já molharam o rosto dos que ficaram para trás. As viaturas chegam como espectadoras de uma tragédia que já aconteceu, enquanto as luzes piscam em um ritmo incessante, iluminando a cena do crime, como se cada flash fosse uma foto que registra o caos.

Quando a sirene soa, é como um aviso mudo de que a violência teve sua vez, que a favela foi, mais uma vez, alvo da brutalidade que nos cerca. Mas ela não carrega esperança. Aqui, a sirene é a trilha sonora da desesperança, do desespero e da impotência. Não é um chamado para a justiça, mas um lembrete de que a justiça, para nós, é lenta, distante, quase inexistente.

As crianças correm para dentro das casas quando ouvem o primeiro eco da sirene. Elas já sabem o que vem depois: homens armados, rostos cobertos, ordens gritadas no ar. O medo se espalha rápido, como um veneno, invadindo os becos e as vielas, enquanto as portas se fecham e as vozes se calam. Ninguém quer ser visto, ninguém quer ser ouvido. Aqui, o silêncio é uma forma de sobrevivência.

A primeira vez que ouvi a sirene, eu era criança. Estava jogando bola com os moleques da rua, rindo e suado, quando o som cortou o ar. Foi como um soco no estômago, e todos nós paramos, olhamos uns para os outros, sem saber o que fazer. Depois, vimos as viaturas passando, rápidas, cortando a viela em direção a algum ponto de conflito que a gente não conhecia. A adrenalina nos fazia querer seguir, ver o que estava acontecendo, mas o medo nos manteve parados. Ali, aprendi que a sirene nunca trazia boas notícias.

Com o tempo, as sirenes passaram a ser uma constante. No início, a gente sentia uma espécie de luto a cada vez que elas ecoavam. Alguém tinha sido pego, alguém tinha caído. Mas, à medida que os dias passavam e o som se tornava cada vez mais frequente, o luto foi substituído por indiferença. Era o ciclo da violência, girando sem parar, sem que ninguém conseguisse interrompê-lo.

Eu conhecia bem demais o que vinha depois da sirene. O barulho das botas no chão, as armas apontadas, as perguntas rápidas e diretas. E, às vezes, as perguntas nem sequer eram feitas. Eram tiros, disparados antes mesmo que alguém pudesse se explicar. E depois, o silêncio. A sirene vinha por último, fechando a cena com seu grito mecânico.

E, assim, a sirene se tornou um som que trazia consigo memórias de perda, de vidas que se foram antes da hora. Era um lembrete constante de que, na favela, ninguém está a salvo, de que todos estamos à mercê de algo muito maior do que nós, algo que não controlamos e que, muitas vezes, nem sequer entendemos.

Essa noite, a sirene tocou mais uma vez. Desta vez, era no fim da minha rua. Eu olhei pela janela e vi as luzes azuis e vermelhas refletindo nas paredes gastas das casas, iluminando o beco como uma cena de crime de um filme mal feito. Era a mesma história, repetida tantas vezes que já perdemos a conta. Mais um corpo, mais uma vida, mais uma família destruída. E, no entanto, o mundo lá fora continuava girando, indiferente ao som das sirenes que se misturavam com o vento.

A sirene não cala, ela grita. Grita o que muitos preferem não ouvir. Mas aqui, no meio desse caos, nós não temos escolha. Ela é parte da nossa vida, tanto quanto o sol que nasce a cada manhã. Enquanto o mundo tenta ignorá-la, nós a ouvimos, como se fosse uma batida de tambor anunciando a próxima batalha. Uma guerra que nunca acaba.

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