Ice Blue, Edy Rock e KL Jay

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Capítulo: Ice Blue, Edy Rock e KL Jay

Eu cresci ouvindo esses nomes, mano. Ice Blue, Edy Rock, KL Jay... Racionais era a bíblia de quem vivia na quebrada. Não tinha um moleque na favela que não soubesse os versos de "Negro Drama" de cor. Eles eram os professores que a escola nunca foi. Quando o governo falhou com a gente, esses caras nos ensinaram sobre sobrevivência, sobre realidade. E eu? Eu tava lá, pequeno, sentado no beco com os fones no ouvido, sonhando em ser alguém grande como eles.

Ouvia cada linha e imaginava: “Um dia vou ser eu rimando assim, vou contar minha história, a história da minha gente”. Na época, eu não tinha nada além do sonho e das paredes de tijolo exposto da minha casa. Minha mãe vivia na correria pra colocar comida na mesa, e eu tentava não me perder no meio de tudo. Mas era difícil, mano. A quebrada sugava quem não tinha foco, e eu tava na beira de cair no buraco, várias vezes.

Quando a coisa apertou de verdade, foi o rap que me puxou de volta. Tinha dias que eu achava que ia ser só mais um na estatística, mais um corpo estendido no chão. Mas aí eu botava os fones, ouvia Racionais, e algo dentro de mim dizia que ainda dava pra fazer diferente. Eu via o caminho do crime bem ali, mas também via que o rap era minha única saída.

E olha só, mano, quem diria que eu ia conseguir? Que eu, o moleque que andava descalço na rua de terra, ia chegar onde cheguei. Eu lembro da primeira vez que entrei num estúdio de verdade, com microfones caros, mesa de som profissional... Eu tremia, tá ligado? Mas no momento em que a batida começou a tocar e eu segurei o mic, tudo fez sentido. Era isso, mano. Meu destino era rimar, contar a verdade.

Aqueles caras, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay, pavimentaram o caminho pra gente, mostraram que dava pra vencer sem trair de onde a gente veio. E eu levei isso comigo. A primeira vez que subi num palco, minha perna quase não aguentava de tanto nervoso. A quebrada inteira tava lá, gritando meu nome, esperando eu soltar a voz. Quando as luzes acenderam e o beat bateu, eu senti tudo. Senti meu passado, a dor, as vitórias. Senti minha mãe, que já não tava mais comigo, mas tava ali de algum jeito.

A favela inteira assistia, esperando a próxima rima. No meio da multidão, eu vi caras que um dia andavam comigo na biqueira, vi as mães que perderam filhos pro tráfico, e vi os moleques que ainda sonhavam em ser como eu. Eles olhavam pra mim e viam esperança, viam que dava pra sair, dava pra vencer.

No meio do show, comecei a lembrar das histórias antigas. Lembrei do tempo que eu corria da polícia, de quando não tinha o que comer. Lembrei da Ana Beatriz, que na escola me zoava, me chamava de vagabundo, de marginal. Ela era aquela mina patricinha, que andava com os playboyzinhos, e hoje? Hoje ela vinha atrás de mim, queria tirar foto, queria aparecer do meu lado. O mundo gira, parceiro.

Agora, eu tava aqui. O novo mano Brown, os caras falavam. Mas eu sabia que era mais que isso. Era sobre mostrar pra todo mundo que nossa voz, a voz da favela, tinha poder. Tinha peso. Não era mais sobre só sobreviver. Era sobre dominar, sobre fazer nosso lugar no mundo.

E a Ana Beatriz? Ela achava que eu tinha esquecido do bullying, das piadinhas, do jeito que me tratava como lixo na escola. Eu fingia que não lembrava, dava risada, posava pras fotos. Mas por dentro, mano, eu nunca esqueço de nada. "Agora cê quer ficar do meu lado porque eu tô ganhando dinheiro?", eu pensava. Mas, né, é assim que o jogo é jogado. Só que ela não me conhecia de verdade, não sabia o que eu passei pra chegar aqui.

Quando o show terminou, o público ainda gritava meu nome. Eu olhei pra eles, vi os moleques que, assim como eu, tinham crescido com o som dos Racionais. Vi as mães, os trabalhadores, os que nunca tiveram uma chance justa na vida. E eu sabia que, por mais que eu tivesse saído da favela, a favela nunca ia sair de mim. Cada rima que eu soltava era por eles, por nós.

Saí do palco, e a multidão ainda gritava. Entrei na van com meus parceiros, acendi um cigarro e fiquei olhando pela janela enquanto a cidade passava. O concreto, as luzes, os barracos, tudo isso fazia parte de quem eu era. Eu nunca ia ser o cara que fingia ter vindo de outro lugar. Meu sangue era da favela, minha alma era do rap, e nada ia mudar isso.

No dia seguinte, recebi uma ligação estranha. Era de um cara da TV, querendo me entrevistar, me colocar em rede nacional. Disse que eu tava estourando, que a mídia tava de olho. Queria saber de onde eu vinha, o que eu pensava sobre o sucesso. "Sucesso?", eu pensei. Pra mim, sucesso era ver os moleques da quebrada indo pra escola, era ver as mães sorrindo sem medo de perder os filhos pro crime. Era ver a favela se levantando.

Mas eu sabia que essa entrevista podia ser uma chance de falar a verdade, de mostrar que a gente existe, que a favela tem voz. Então, aceitei. Quando cheguei no estúdio, me senti fora de lugar. Era tudo muito limpo, muito polido, e eu? Eu era o cara que cresceu no esgoto, que aprendeu a sobreviver na selva de concreto. Mas fiquei firme. Sentei no sofá, encarei as câmeras, e quando o cara começou com as perguntas clichês, eu soltei a real.

"Mano, a favela não é só violência, tá ligado? Não é só crime. Tem talento, tem vida, tem história. Eu sou só mais um exemplo de que, mesmo vindo de baixo, a gente pode chegar longe. Mas não esquece, o caminho é sujo, é cheio de armadilhas. E nem todo mundo sobrevive."

A entrevista rolou e no outro dia, mano, eu era notícia. O "novo Brown", o "cara que saiu da favela e venceu". Mas isso nunca foi sobre fama pra mim. Era sobre representar, sobre usar minha voz pra algo maior.

Agora, quando olho no espelho, vejo mais que o moleque da Pedreira. Vejo alguém que conseguiu transformar dor em arte, alguém que aprendeu com os melhores – Ice Blue, Edy Rock, KL Jay. Eu sou parte dessa linhagem, e sei que cada rima que solto é um pedaço da nossa história, da nossa luta.

O rap me fez ser o que sou.

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