Entre o Sucesso e a Lama

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Era sempre o mesmo barulho. Sirenes cortando a madrugada, gritos abafados no corredor, e depois o silêncio. Esse silêncio, pesado como o mundo, o silêncio que sufoca. Eu cresci com ele. As paredes finas do barraco mal seguravam o frio, mas eram mestres em guardar os segredos. Cada família aqui tinha uma história que preferia não contar, e eu? Eu tinha várias.

Minha mãe já estava de pé quando o dia ainda nem tinha nascido direito. O barulho da panela velha batendo no fogão foi meu despertador, mais uma vez. O cheiro de café fraco e pão amanhecido me puxou da cama, mesmo sem vontade de encarar mais um dia. O teto do quarto era só uma coleção de goteiras mal consertadas e, de alguma forma, isso sempre me lembrava que a vida aqui nunca ia ser consertada por completo.

Eu não sabia o que era pior: o som das sirenes ou o silêncio que vinha depois. Porque, no fim, a gente se acostuma com o barulho. Mas o silêncio... esse é traiçoeiro. Ele é o luto não dito, a raiva engolida, o medo disfarçado de rotina. Eu vivia nesse silêncio, e ele vivia em mim.

Lá fora, a quebrada já estava acordada. As crianças corriam descalças pelas ruas, a poeira levantando ao redor dos pés pequenos, sujos de um chão que nunca ficava limpo. A vida aqui continuava, mesmo que a cidade grande nem soubesse que a gente existia. A favela respirava por conta própria, e o ar era pesado.

"Gabriel, você vai pra escola hoje ou não?" A voz da minha mãe ecoou pela casa. O tom já cansado, mesmo sendo tão cedo. Eu sabia que ela queria que eu dissesse sim, que eu fosse "fazer meu futuro". Mas o futuro que ela sonhava pra mim não era o mesmo que a rua tinha preparado.

Olhei pro espelho quebrado na parede. A moldura torta, cheia de remendos. Era uma boa metáfora de mim mesmo. Remendado, rachado, sempre um passo de desmoronar, mas ainda de pé. Eu sabia o que esperava lá fora. Sabia que na esquina do colégio, os olhares iam me seguir. Não porque eu era diferente dos outros, mas porque eu era igual. Moleque negro, de uniforme surrado, tênis furado, e a mochila nas costas que pesava mais do que os livros que eu carregava. Pesava o medo, a raiva, o cansaço. E o silêncio.

Saí sem responder à minha mãe. O caminho até a escola era curto, mas parecia uma jornada. Passava pela padaria onde os playboys da zona sul só apareciam quando queriam se sentir "aventureiros" comendo coxinha no "outro lado" da cidade. A gente era o outro lado. Eles nem sabiam que pra nós, esse lado era o único. Vi a Maria, a filha da dona da venda, sentada na calçada, tentando vender bala pra ajudar em casa. Mal completou 10 anos, mas já entendia mais da vida do que muito doutor. Aqui, a infância durava até onde o primeiro tiro ecoava. Depois disso, era todo mundo adulto, quisesse ou não.

Cheguei no colégio com o mesmo atraso de sempre. Os portões quase fechando, o olhar de desaprovação da diretora. Nada novo. A aula? Uma piada. Livro didático nunca foi suficiente pra ensinar a gente a sobreviver. A matemática da vida na periferia era outra: um mais um não dava dois, dava dívida. O resultado sempre era menos. Menos oportunidades, menos respeito, menos chances. Mas o que eu tinha de sobra era fome. Fome de mudança, de sair desse ciclo.

Na sala de aula, os olhares eram como facas. Corta a gente sem nem precisar tocar. A professora falava de um futuro que parecia tão distante quanto uma viagem pra outro planeta. "Se vocês estudarem, podem ser o que quiserem." Eu queria acreditar. Queria mesmo. Mas a realidade era outra. O único diploma que vi de perto foi o da formatura dos caras no tráfico. E eles tinham festa, bolo, e dinheiro no bolso.

Na última fileira, eu sentava com o Davi, meu parceiro de longa data. Ele sabia das coisas. Sabia que a escola não ia salvar a gente. "Esse bagulho de educação é pra quem já nasceu no topo, mano", ele me disse uma vez. Eu tentei não acreditar, mas era difícil. O som da sirene do lado de fora invadiu a aula de novo. Um garoto da outra sala foi levado pela polícia. Inocente ou culpado, não importava. Ele era só mais um.

Depois da aula, Davi e eu cortamos caminho pelos becos. A rua era o verdadeiro campo de batalha, e a gente andava sabendo que a qualquer momento poderia ser o último. Cada esquina era uma escolha, e cada escolha podia custar caro. A boca de fumo, as rodinhas de conversa, as ofertas fáceis... Eu sabia como isso terminava. Sabia que o preço de se iludir com a vida fácil era a morte, ou algo pior: ser esquecido.

"Mano, às vezes eu acho que a gente tá preso num labirinto, tá ligado? E quanto mais a gente tenta sair, mais a vida puxa a gente de volta pra mesma merda." Davi parou pra acender um cigarro. O olhar dele era vazio, como se o tempo tivesse sugado todo o brilho de dentro. Eu entendia. A gente tentava ser forte, mas a verdade? Tava todo mundo cansado. Cansado de ser tratado como ninguém, cansado de tentar e ver o mundo te empurrar pra trás.

Mas eu ainda tinha algo dentro de mim, uma fagulha. A rua podia ter destruído muita coisa, mas eu me recusava a deixar ela apagar meu sonho. Eu não sabia bem qual era esse sonho ainda, mas sabia que ele não cabia nesse lugar. Não cabia no barraco, nem na sala de aula. Era maior. Talvez não fosse pra mim, talvez fosse pra todos nós. Uma chance, um momento, algo que me tirasse desse silêncio eterno.

O sol já se punha quando eu voltei pra casa. Minha mãe me esperava com a mesma expressão cansada, mas com um olhar de esperança. Pra ela, eu ainda era o futuro, a promessa de que as coisas podiam ser diferentes. Ela não sabia, mas era o sorriso dela que mantinha minha fagulha acesa. O negro drama continuava, mas enquanto eu respirasse, ainda haveria luta. E onde há luta, há chance de vitória, mesmo que pequena.

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Negro DRAMAOnde histórias criam vida. Descubra agora