Fama

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A marcha pela memória de Lucas reverberou pela quebrada, mas não apenas nos becos e vielas que conhecíamos. As imagens da nossa luta começaram a aparecer nas redes sociais, nas páginas de notícias locais e até mesmo em programas de TV. Era como se um novo mundo se abrisse diante de nós, um mundo que antes parecia tão distante e inatingível: o mundo da fama.

Nos dias que se seguiram, a escola se transformou. A antiga indiferença que cercava a nossa realidade deu lugar a uma atenção repentina. Os alunos que antes mal olhavam pra nós agora se aproximavam, curiosos e ansiosos por saber mais sobre a marcha. Alguns até tentavam se conectar, como se tivessem alguma ligação com a nossa dor. Era como se a fama tivesse o poder de trazer à tona uma empatia que antes era inexistente.

“Olha só quem tá na boca do povo,” Ana Beatriz comentou, tentando parecer casual, mas o brilho nos olhos dela entregava a curiosidade. “Vocês realmente acharam que isso ia dar em alguma coisa? Nunca vi tanta gente comentar sobre a quebrada.”

A voz dela tinha um tom de incredulidade, mas também havia uma sombra de inveja. Era como se ela quisesse que a atenção tivesse vindo pra ela, pra festa dela, e não pra nossa dor. Mas a verdade é que a fama tinha suas armadilhas, e nós estávamos começando a sentir o peso dela.

Davi e eu estávamos conversando na lanchonete da escola quando um grupo de alunos se aproximou. “Ei, vocês são os caras da marcha, né?” perguntou um deles, um menino que costumava ignorar a gente. “Vocês devem estar com tudo agora! Tem até gente falando que vocês vão ser entrevistados na televisão!”

A sensação de ser reconhecido pela primeira vez era estranha. Parte de mim queria abraçar a nova atenção, mas outra parte se perguntava: “A fama é o que realmente queremos?” Eu olhei pra Davi, que parecia tão perdido em pensamentos quanto eu. A fama podia trazer luz, mas também podia ser uma distração da luta que realmente importava.

Naquela noite, recebi uma mensagem de uma produtora de TV que queria me entrevistar sobre a marcha e a memória de Lucas. “Isso é uma oportunidade incrível!” minha mãe disse, entusiasmada, enquanto me encorajava a aceitar. Mas eu não tinha certeza. O que eu realmente queria era que as pessoas ouvissem nossa mensagem, não que nos transformassem em um espetáculo.

A entrevista aconteceu em um estúdio simples, mas iluminado de maneira glamourosa. A apresentadora, com seu sorriso perfeito e cabelo liso, parecia uma figura de outro mundo. Quando as câmeras começaram a gravar, o nervosismo tomou conta de mim.

“Como você se sente sendo um dos porta-vozes dessa luta?” ela perguntou, com um olhar intenso.

Respirei fundo, sentindo que tinha a responsabilidade de transmitir algo verdadeiro. “Não sou um porta-voz, sou apenas um garoto que perdeu um amigo. A gente tá lutando não por fama, mas por justiça. Queremos que Lucas não seja apenas uma estatística, mas uma lembrança viva de que precisamos de mudança.”

A apresentadora sorriu, mas seu olhar parecia mais preocupado em capturar a emoção do momento do que entender a profundidade da minha mensagem. O episódio foi ao ar na noite seguinte, e enquanto eu assistia, a sensação de desconforto crescia. A edição havia retirado partes importantes do que eu disse, focando mais no drama do que na mensagem.

As redes sociais bombaram com comentários, mas nem todos eram positivos. Havia quem torcesse por nós, mas outros viam a nossa luta como uma oportunidade de criar memes e piadas. A fama, que parecia inicialmente empoderadora, estava se transformando em um fardo.

“Isso não é o que queríamos,” Davi disse, ao ver os comentários nas redes sociais. “Olha isso! Estão mais preocupados em tirar sarro do que em entender a nossa luta.”

O clima na escola começou a mudar novamente. Agora éramos uma atração, mas não da forma que esperávamos. As pessoas que antes ignoravam nossa dor agora queriam ser parte da nossa história, como se pudessem se apropriar dela. Ana Beatriz, por exemplo, começou a se intrometer em tudo, tentando se envolver na nossa luta como se ela sempre tivesse sido uma aliada.

“Vocês precisam de ajuda pra se organizar, eu tenho algumas ideias,” ela disse, tentando se aproximar de nós. Mas a verdade era que ela só queria estar no centro das atenções.

“Não precisamos de você,” eu respondi, tentando ser firme. “A luta é nossa, não sua.”

Enquanto isso, a fama parecia afastar o foco da mensagem que realmente queríamos passar. O que começou como uma marcha pela memória de Lucas e uma luta por justiça estava se tornando um espetáculo. A fama tinha suas consequências, e nós estávamos começando a ver o lado sombrio dela.

Diante de tudo isso, eu sabia que precisava tomar uma decisão. Precisávamos encontrar uma forma de redirecionar essa atenção, de usar a fama como uma ferramenta para amplificar nossa mensagem, e não como uma distração. Lucas merecia que a luta continuasse, mas não da maneira como estávamos vendo.

E, acima de tudo, nós precisávamos nos lembrar de quem éramos e do que realmente importava. A fama não deveria definir a nossa luta. A voz da quebrada tinha que ser ouvida, e isso era mais importante do que qualquer reconhecimento pessoal.

“Vamos usar isso a nosso favor,” eu disse a Davi, olhando pra ele com determinação. “Vamos transformar a fama em uma plataforma para falar sobre as realidades da quebrada. Precisamos de um novo plano, algo que realmente faça a diferença.”

Davi assentiu, e a chama da determinação reacendeu dentro de mim. O caminho seria difícil, mas nós não iríamos desistir. A luta por Lucas, e por todos que se sentiam invisíveis, ainda estava apenas começando.

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