Periferias

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A periferia não dorme, não descansa. Ela pulsa, se move, respira. Na escuridão das vielas, há vida, mas também há morte à espreita. Tudo acontece ao mesmo tempo, num ciclo sem fim de sobrevivência e luta. E naquela noite, a periferia era um reflexo perfeito de tudo que eu sentia: a tensão no ar, o medo misturado com a resiliência, a sensação de que algo poderia ruir a qualquer momento.

Eu saí cedo no dia seguinte, o corpo pesado de cansaço e a mente ainda mais exausta. Richard não voltou. Nenhuma notícia, nenhuma pista. Seu sumiço era mais um entre tantos que desapareciam como fumaça nas periferias. Eu queria acreditar que ele ainda estava por aí, mas a verdade é que já tinha começado a me preparar para o pior.

O caminho até o trabalho era o mesmo de sempre. As ruas eram estreitas, os muros rabiscados por pichos que gritavam resistência. Aqui, na favela, a arte urbana era mais do que tinta no concreto, era uma voz, um grito de socorro e de revolta. Passava pelos murais que mostravam rostos negros, cabeças erguidas, punhos fechados, imagens de força e dor. A periferia falava, mas o mundo lá fora não queria ouvir.

Enquanto andava, o cheiro de comida sendo preparada nas barracas de rua misturava-se com o som das motos que cortavam as ruas, indo para cá e para lá, como se a vida fosse um eterno corre. Eu sabia o que se passava nos becos. Sabia que cada esquina tinha sua própria realidade, algumas delas violentas demais para serem explicadas em palavras. Era uma vida que não permitia pausas, que não aceitava fragilidades.

Quando cheguei na porta da oficina onde trabalhava, notei um grupo de moleques mais jovens na frente, conversando animadamente sobre as últimas corridas de racha. Eles eram como eu havia sido, cheios de sonhos que a favela engolia aos poucos. Sabiam que o futuro não era garantido, mas ainda assim, se apegavam ao que podiam.

A oficina era um dos poucos lugares onde eu sentia algum controle. Era onde eu trabalhava com as mãos, sentia o cheiro de óleo, ouvia o som das ferramentas. Ali, o caos do lado de fora parecia se acalmar, ainda que temporariamente. O dono, Seu Zé, era um dos poucos homens mais velhos da comunidade que ainda acreditavam que podíamos fazer algo mais do que sobreviver. Ele me ensinou o que sabia, me deu um propósito em meio ao turbilhão de incertezas.

“E o Richard?” Seu Zé perguntou assim que entrei.

Suspirei, balançando a cabeça. “Nada ainda. Sumiu.”

Seu Zé franziu o cenho, sua expressão endurecendo. Ele não precisou dizer nada. O olhar dele dizia tudo. Na periferia, um desaparecimento quase sempre significava o fim. Sabíamos disso, mas ainda assim, era difícil aceitar.

Aquele dia passou arrastado. Entre um conserto e outro, minha mente voltava sempre ao mesmo ponto: Richard. Como ele podia sumir assim? Como alguém simplesmente desaparecia na noite e se tornava apenas mais um nome apagado nas histórias da periferia?

Ao fim do expediente, o céu já estava pintado de laranja, a noite chegando com rapidez. Peguei o caminho de volta, sentindo o peso da preocupação se tornar mais denso a cada passo. As periferias eram lugares onde o tempo parecia ter suas próprias regras. As coisas aconteciam rápido demais, e a vida podia mudar de uma hora para outra.

Chegando perto de casa, encontrei Davi, sentado no degrau da porta de sua casa. Ele olhava fixamente para o chão, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. Me aproximei, sentindo que algo estava errado.

"Falaram que viram o Richard ontem à noite", ele disse sem me olhar.

Meu coração pulou. "Onde?"

"Na quebrada dos prédios abandonados, perto da ponte."

Aquela área era conhecida. Era território onde os negócios aconteciam no silêncio da noite, longe dos olhares curiosos, longe da polícia. Ninguém ia lá sem motivo, e quem ia geralmente não voltava.

"Dizem que ele tava com uns caras perigosos", continuou Davi, sua voz quase um sussurro.

Eu sabia o que aquilo significava. Richard, sempre tentando escapar da realidade da favela, podia ter se enfiado em algo mais perigoso do que ele podia suportar. Ele sempre falava de sair, de ter uma vida melhor, mas às vezes o caminho mais fácil era o mais perigoso.

A periferia era assim. Um campo de batalhas onde honra e covardia se misturavam, onde sobrevivência era questão de escolha e coragem. E agora, Richard estava envolvido em algo que podia engolir sua vida por completo.

"Vou lá procurar", eu disse, a decisão já tomada antes que pudesse refletir nas consequências.

Davi ergueu os olhos, assustado. "Você tá maluco? Aquele lugar é perigoso."

"Richard é meu amigo. Não posso deixar pra lá."

Ele não disse mais nada, mas o medo estava estampado em seu rosto. Eu sabia que ir até lá significava me expor ao mesmo perigo que havia tragado Richard, mas naquele momento, a lealdade falava mais alto que a razão. Na periferia, era assim. Sobrevivíamos em meio à honra e à covardia, sempre no limite entre o certo e o errado.

Naquela noite, enquanto a escuridão engolia a favela, eu saí para buscar meu amigo, ciente de que talvez estivesse caminhando para meu próprio fim.

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