CHUVA

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Era já o terceiro dia de chuva incessante. De repente as águas apenas despencavam do céu, acompanhando a tristeza vertida por muitos pares de olhos dentro daquele castelo e nas imediações. Independente do mau tempo, o sepultamento aconteceria, junto aos demais corpos da família, na cripta da capela, mas nós não iríamos. Ana não tinha condições físicas de ser movida. Eu não a deixaria sozinha. Algumas pessoas cuidavam de Arge e outras de todo o volume de trabalho que pertencia a Ana. Apenas Jis, meu sogro e meu pai estariam lá para dar o último adeus àquele membro da família cujo rosto nós nem pudemos conhecer. Ana estava inconformada e chorava sem parar. Ninguém podia julgar seu pranto e a dor que ela sentia, porque nada no mundo se equipara a perder um fruto de sua própria existência. Para os pais, desejosos da vida de um filho, a interrupção de sua existência é excruciante. Eu queria chorar também, pois sentia o meu peito abafado do sofrimento entalado na garganta, me sufocando como uma besta com as suas garras hirsutas e afiadas, porém engoli o choro enquanto assistia a chuva cair e escorrer pelo vidro da janela.

Quando Ana pediu, com a voz débil, pela minha proximidade, eu a atendi. Ajoelhei-me ao lado da cama, peguei sua mão entre as minhas e fizemos algumas orações de sua religião, encomendando a alma do inocente. Nossas vozes soavam estranguladas, roucas. Ana fechava as pálpebras, mostrando elas inchadas e escurecidas do sofrimento. Os lábios secos, o rosto sem saúde. Engoli seco, temendo pela vida dela pela centésima vez naquele dia. Se Ana morresse, o que seria de nós?

Mais tarde, naquele dia sombrio, eu novamente precisei cuidar da higiene dela. Um processo natural e quotidiano para mim, o meu dever como marido. Eu notava o quanto ela se sentia desconfortável, sempre virando os olhos para não olhar no meu rosto. Ou para que eu não visse o quanto se sentia impotente e decadente. Ana não entendia que eu havia lhe jurado amor e cuidado por toda a vida, e era exatamente aquele o significado concreto de tal promessa. A verdade era que a minha única expressão era de dor, por ver seu corpo tomado por hematomas pretos e arroxeados. Agradeci porque ela, pelo menos, tinha parado de sangrar. Era a minha maior preocupação. O restante era sinal de que seu corpo estava funcionando como deveria, um motivo de gratidão e esperança.

Eu a limpava com um pano úmido e água de rosas, trocava suas roupas e depois descia com as roupas sujas para colocar de molho. Para quarar as suas camisolas brancas. Então eu subia com alguma comida para nós. Eu queria beber Palincă, contudo, na medicina dos lobos, o corpo da companhia não podia passar por traumas para não atrapalhar o processo de cura do cônjuge. Controlei-me.

Voltando para o quarto ouvi a conversa daqueles que chegavam com sua aura enlutada. Eles diziam da tristeza de enterrar um natimorto. Senti uma pontada de dor, contudo segui em silêncio para o quarto. Antes de entrar, controlei o meu rosto para que Ana não visse uma expressão ruim. Apertei os dentes e tranquei o choro.

Mais tarde, naquela noite, ouvi Veteri conversando com a guarda na porta do quarto. Aquilo era incomum. Saí do cômodo para ver. Ele estava agitado.

— O que aconteceu? — Perguntei já em alerta.

— Uma turma de mercenários está subindo para o castelo. Vamos descer para reprimi-los. Estão matando quem encontram pela frente. — Avisou espavorido. Pelo seu tom eu sabia que era uma situação muito grave.

Aquele tipo de mercenário? — Questionei em um sussurro enquanto o encarava.

— Sim. Aquele tipo. Começou com um, dois... mas parece que as últimas notícias já chegaram, seja lá onde for. — Inteirou-me da situação complexa.

— Eu vou também. — Falei, fechando a porta atrás de mim.

— Você deve ficar. — Veteri me parou com a mão no meu peito.

— Sou um dos melhores guerreiros daqui. Eles querem a cabeça da minha esposa e eu não vou deixar. — Afirmei determinado. Eu vou e isso será rápido.

Houve impasse, mas estávamos contra o tempo e não havia como discutir ou argumentar.

Avisei o meu sogro sobre o acontecimento e pedi que ele ficasse com Ana. Ele não entendeu bem, mas não tive tempo de explicar como deveria. Eles sabiam que estávamos derrubados, recolhidos no castelo, e iam atacar o lugar até nos rendermos. Era um plano asqueroso e previsível. Eu devia mostrar força para mandar o recado de que meu lar não estava desprotegido. Eu deveria mostrar meu rosto, para que os inimigos entendessem que ninguém colocaria as mãos na minha família.

Vesti a minha armadura, desci do castelo debaixo da pesada chuva e montei em um cavalo. Saímos na baixa visibilidade do clima, todos em formação. Encontramos o grupo na frente da Instituição Fēmina, prontos para atacar. Sequer fizeram questão de disfarçar. Havia muitos gritos no escuro e rastros de destruição. Eu desembainhei a minha espada e acertei a maioria daqueles que ousou se levantar contra nós, arrancando seus membros, perfurando seus peitos, cortando as cabeças. Estava escuro, mas eu sentia o cheiro do banho de sangue nas ruas. Os gritos de desespero. O clamor por piedade.

— Eu tenho filhos! Eu tenho filhos! – Um deles gritou quando se viu acuado.

Eu também tinha.

Saltei do cavalo sobre ele e caí com a mão em seu pescoço.

— Quem mandou você aqui?! — Perguntei enquanto o imobilizava.

— Eu não sei! — Ele respondeu com seu forte sotaque.

— Quem te mandou aqui?! — Exigi uma resposta.

— Eu não sei! EU NÃO SEI! — Ele se debatia sob o meu peso. Porque eu era mais pesado do que parecia. E mais forte do que um humano.

Peguei um punhal na cintura e cortei a virilha do homem. Ele começou a gritar e um trovão abafou.

— Se me falar a verdade eu te deixo viver. — Menti sem escrúpulos. — Eu prometo.

— Eles não dizem quem são! — Ele contou, então começou a morder a própria língua.

Vi que aquilo não daria em nada, então finalizei o assassinato, possesso de ódio e sede de sangue.

Levantei de cima do corpo e passei a mão pelo meu cabelo.

— Veteri... — Chamei. Ele estava dando ordens para recolherem os corpos e todos os objetos.

— Investiguem também a região! — Disse. Então olhou para mim: — Sim, senhor...

Eu sempre esquecia que agora eu era senhor, o marido da grande senhora Merak.

— Veteri, não me questione. Quero que arranque as cabeças deles e distribua entre as entradas das terras. Finque-as em estacas e exiba para que se veja ao longe. — Ordenei sem nenhuma piedade.

Mesmo no escuro, vi o choque expresso no rosto do meu líder lupino. A minha decisão era uma expressão máxima de violência, quase uma declaração oficial de guerra.

— Valenius... — Ele falou preocupado.

— Precisamos usar eles como exemplo. Ana está muito frágil agora. — Suspirei. A minha ideia era boa, eu sabia. Apesar de tudo, colocar os nossos vizinhos em alerta nos garantia certo respaldo.

— Vamos entrar em estado hostil sem poder solicitar ajuda dos vizinhos. — Veteri avisou. Não teríamos seus soldados, mas haveria abrigo se a família precisasse. — A Igreja está metida nisso.

— Sim, eu sei.

E virei as costas para montar no meu cavalo e voltar para o castelo.

***

Ninguém sabia que um escapou. E ele ouvira que Ana estava frágil.

Ana Merak - Dever e HonraOnde histórias criam vida. Descubra agora