Dia após dia o meu mundo desmoronava. Eu não podia mais ficar perto de Ana porque ela não permitia, mas eu ficava na porta, um lugar que era meu por direito, firmado em contrato já que eu seria seu guarda pessoal até o fim da minha vida. Eu não entendia os motivos dela para me afastar de sua pessoa. Foi repentino. Eu ouvia ela chorando, com maior frequência do que antes, enquanto não podia fazer nada. Meus amigos que estavam na guarda e os que iam me visitar sempre trocavam olhares cúmplices comigo, porque eles também escutavam o choro abafado nos travesseiros. Era infernal lidar com aquele aperto no peito. O médico e Pricila garantiram que ela estava se recuperando bem, mas quando eu entrava no quarto a via pálida, apática. Ela me olhava com desespero e medo. Comecei a me sentir pior porque Ana não tinha mais confiança em mim. Contudo, eu sabia o gênio que ela tinha e não arriscaria dizer para ela sobre todo o cenário que se desenrolava. Ana era intempestiva, ficaria ainda mais consumida se soubesse.
Pelo menos a chuva parou. Depois de alguns dias de derramamento pluvial, o sol resolveu surgir, cínico e brilhante em seu trono de impecável azul. O cheiro de natureza encharcada estava intenso. As pessoas pareciam surgidas de uma dimensão diferente, pois seus sentidos estavam confusos. Eu as evitava para não lidar com as suas curiosidades e questionamentos sobre o meu luto. Até que me senti esperançoso com o clima, pois um pouco de sol faria bem para a recuperação da minha esposa. Talvez tirasse aquele acinzentado de morte da sua pele. Quem sabe, devolveria a ela a intensidade no sentimento que restava por mim. Tive medo de que a qualquer momento ela me abandonasse para ter um marido humano.
Naquela certa manhã eu andei até o quarto do meu filho, arrastando comigo o onipresente fardo da culpa, quando encontrei meu sogro pelo caminho.
— Não fique assim, filho. Em breve tudo será melhor. Ana está se recuperando e esses processos levam tempo. — Ele deu um tapa leve no meu ombro.
— Será que ela ainda me ama? — Soltei as palavras sem me atentar e logo me arrependi. Fitei o rosto confuso do meu sogro, então decidi falar tudo de uma vez. — Ela parece rejeitar a minha presença, então, será que está arrependida do nosso casamento? Ela confessou algo? Deixe-me saber para que eu não seja apenas um tolo arrastando a minha miséria pelos cantos.
O meu sogro ficou em silêncio, procurando as palavras para me dizer seus pensamentos. E pelo prolongar solene daquele momento, eu temi a vinda da pior resposta. Imaginei que ele diria que eu podia seguir com a minha vida, que ela não me amava mais, mas a resposta me surpreendeu. Eu não estava preparado.
— E você, a ama? — Ele perguntou e cruzou os braços, me encarando.
— É óbvio que sim! — Afirmei, irritado. Rápido e intenso demais para o tom que a nossa conversa teve até ali, mas a menor das desconfianças sobre meus sentimentos já me tirava do sério porque eu era honesto.
— Então o resto faz pouca diferença. — Meu sogro deu de ombros. De imediato aquela não parecia uma grande resposta, pois eu esperei por soluções. — Vou ver a minha filha.
Fiquei sozinho com a reflexão sobre aquelas palavras. No silêncio, parado como um louco, com o olhar perdido no vazio. Meu sogro era uma autoridade quando o assunto era amor. Amou a vida toda uma mulher que pouco esteve com ele, e foi fiel, devotado.
Quando entrei no quarto de Arge, encontrei com Solis e Tenebris. Ele estava sempre ao lado dela, cuidando. Os bebês deles também estavam ali.
— Você parece um fantasma, meu amigo. — Tenebris falou sem amaciar o tom.
— É porque ando um pouco morto por dentro. — Confessei também pouco disposto a ser afável.
— Quer conversar acerca de seus temores? — Solis ofereceu uma oportunidade de desabafo.
— Não tenho o que dizer. Minha vida pacífica e boa se tornou um verdadeiro inferno. Uma criança morta por minha culpa... — Senti a voz embargando enquanto eu derramava aquelas palavras. — Uma esposa que me rejeita.
Solis suspirou e trocou olhares com Tenebris.
— A criança não morreu por sua culpa, Valenius. — A voz de Solis me alcançou. — Foi um acidente. Não podemos prever e prevenir esse tipo de situação, pois apenas acontece.
— Se fosse um aborto natural e Ana se culpasse, como seria o seu ponto de vista? — Tenebris perguntou.
— É diferente. Vocês sabem que conseguimos antecipar os atos de alguns animais. Eu não devia ter deixado a minha esposa perto de um potro chucro, porque é uma situação perigosa por si só. — Meus olhos já estavam marejados. — Talvez ela me odeie por isso, porque não fui bom em cuidar dela.
— Ana não odeia você. — Solis falou em tom seco.
— É? Então por que...
— Ela não odeia você, Valenius. — Solis insistiu.
Meu filho acordou e começou a chorar. Peguei ele no colo para acalmá-lo. Ele tinha os olhos da avó, quando nasceu, mas eles estavam escurecendo e se tornando castanhos, como os cabelos que estavam ganhando corpo em sua frágil cabeça. Seus traços começaram a ser identificáveis. Ele não se parecia mais comigo ou com Ana, mas era uma perfeita mistura entre nós. Também era uma criança grande, em breve pareceria ter dois anos. Era a herança de Barakj, gritando através dos tempos. O velho era muito alto, mais alto do que todos nós. Lira também era mais alta do que a média.
Olhando nos olhos do meu filho eu me acalmei. Ele sorriu para mim e mexeu os braços de forma descoordenada. Eu ri.
— Ah... Que parvo... — Tenebris infucou.
Olhei para ele e para Solis. Ambos estavam sorrindo.
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Ana Merak - Dever e Honra
FantastikAna Merak descende de uma família que se encontrou com a magia em condições adversas. A mãe de Ana era humana, mas foi recrutada para lutar pelo equilíbrio do mundo. Em meio ao caos da vida, a prestigiada Lira Merak deu à luz suas filhas, e teve uma...