ARTE

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O mais puro caos. Assim estava o castelo às vésperas da minha não tão aguardada festa de apresentação. Havia uma excitação crescente no meu coração e, uma semana antes do baile, combinamos com Pricila de que era impossível continuar as aulas naqueles dias. As pratas da casa estavam sendo polidas, as últimas encomendas chegavam e eram amontoadas pelos cantos em caixas de madeiras. A vila, aos poucos, se tornava enfeitada com bandeirinhas e flores de tecido. Meus convidados enviavam mensageiros, avisando de sua chegada em breve.

Como era de se esperar, todos os ducados aceitaram o convite, o que aumentava a nossa responsabilidade de fazer um encontro soberbo de inesquecível. A agitação era tanta que havia uma sensação diferente pairando no ar. Um misto de ansiedade e determinação. Todos os objetos que podiam ser quebrados foram retirados do salão e guardados. Algumas peças de muito valor também foram recolhidas de todos os cômodos e entulhadas no meu ateliê, que ficou de portas trancadas.

O tempo que mais esperei chegou dois dias antes do baile, quando a orquestra se reuniu para ensaiar. Fui para a sala e observei a amálgama de músicos de nações diferentes, que mal se entendiam. Boa parte deles se comunicava em latim, mas com sotaques pesados e frases mal formadas. O importante era que a linguagem da música todos entendiam, e, muito breve, entraram em sincronia e sintonia, fazendo ecoar no salão Merak uma melodia linda e profunda. Fechei meus olhos para sentir na alma. Um grande sorriso não abandonava meu rosto. Aquela era a minha parte favorita: a arte. A arte pulsava vivaz por todo lugar, em simples enfeites de tecido, em arranjos de flores, nas músicas e até no comportamento das pessoas. A comida se via primorosa.

Agradeci aos músicos depois do ensaio e tirei um tempo para visitar os barracões onde era preparada a festa da vila. Conheci tantas pessoas que mal podia lembrar de seus nomes. Havia muita curiosidade porque era a primeira vez que muitos me viam. Já outros, que me conheciam das missas dominicais, não tinham certeza se eu iria comparecer na comemoração. Afirmei que iria com toda a certeza, que deveriam guardar um pouco de comida para mim. Ninguém mais sabia, porém eu pedira para a costureira fazer um segundo vestido, especial para essa festa.

— Você não sossega um momento. — Valenius reclamou enquanto sentávamos nos dorsos de nossos cavalos, para voltar ao castelo.

Estava irritadiço com tanto movimento. O nível de segurança tinha baixado drasticamente, o que era um pesadelo para os guardas.

Olhei para ele e sorri.

— Onde está o seu espírito festivo, senhor? Vamos comemorar os meus anos. — Provoquei-o enquanto incitava a marcha do meu cavalo.

Ele semicerrou os olhos.

— Quanto maior a multidão, maior é o perigo para a sua vida. — Reclamou, amargo.

— Até parece que você não é um lobo gigante. — Sussurrei para o vento.

Ele entendeu, pois sorriu com o canto da boca.

Colocamos os cavalos para trotar. Vovô e papai estavam atolados até o pescoço com os preparativos, então ter um guarda pessoal era muito útil. Eu dobraria o pagamento de Valenius para aquele período.

A notícia sobre Gregório se espalhou e já tinha cruzado o oceano, rumo ao oriente. Recebemos pistas de que o atual príncipe entrara em uma queda livre de popularidade, pois seu filho abusador já tinha se metido com outras moças importantes, contudo, elas não tinham sido suficientemente corajosas para denunciar. Na minha opinião elas tinham coragem e as famílias não deixavam. Pelo menos não até eu ser a primeira.

Os convidados chegando no castelo foram meu maior pesadelo. Cada um com sua mania e todos determinados a conversar comigo. Era um confuso vórtice que eu só conseguia resolver quando me trancava sozinha no meu quarto e pedia para mentirem que eu estava indisposta enquanto pintava no cavalete que colocara ali. Minha nova obra era um autorretrato com o vestido do baile.

Solis brilhou mais do que nunca. Ela renasceu para as situações sociais. Nos encontros de moças, para o chá, passeios no bosque ou cavalgadas, ela se saía muito bem. Nenhuma situação fora tão tensa quanto a de Gregório. Na verdade era divertido.

Eu aproveitava das fofocas para compreender o que estava acontecendo em terras de outros senhores.

Porém, a minha maior surpresa de véspera, ocorreu realmente na véspera.

Um duque chegou com a sua comitiva e fomos recebê-lo, como de costume. Enquanto Pulchra direcionava os serviçais, notei a presença de uma moça que não me era estranha. Ela cobria muito o rosto. Pedi licença e me aproximei dela enquanto os serviçais daquela comitiva davam a volta no castelo para guardar os pertences no quarto reservado para eles. Ela estava atrás de todos na fila, passando despercebida. Quando notou minha aproximação, apressou o passo, contudo eu segurei seu braço. Ela tentou fugir e Valenius entrou na frente.

— Você... — Tirei o chapéu com lenço que ela trazia na cabeça.

Ela me olhou um pouco assustada.

— Por que estava fugindo de mim, Alice Meñdanez? — Sussurrei, olhando para os lados.

— Não sei quem é essa, senhorita. — Ela falou baixo e rouco, com um tom pouco natural.

— Ah... É ela, não é Valenius? — Busquei por confirmação.

— Com toda a certeza, senhorita Merak. — Afirmou sem sombra de dúvidas.

— Meu nome é Margaeryna, senhorita. — Tentou me tapear.

— Que nome estranho é esse que você arrumou, Alice? Isso mais te destaca do que qualquer coisa. — Reclamei e soltei o braço dela.

Ela suspirou pesado.

— Você é uma ótima fisionomista, Ana. — Sorriu, me olhando nos olhos. — Apenas não me delate.

— Rá! É um talento natural. — Falei, sorrindo largamente. — Você está ótima, até engordou um pouco. As suas bochechas estão coradas. Você está linda, Manjerina.

— É Margaeryna, e agradeço pelos elogios. Sou mais feliz agora, como criada, do que era antes. Apesar de todas as dificuldades, é claro. Tenho muito a lhe agradecer, mas não tenho dinheiro para pagar. Estou juntando meus ganhos, para viajar para a China. — Explicou com brilho sonhador no olhar.

— Meu coração se enche de luz com a sua declaração, minha amiga. Aproveite a estadia no castelo. — Desejei, passando a mão no braço dela, com carinho.

Pulchra, acompanhada com uma senhora da comitiva, veio na nossa direção.

— Perdoe se ela incomodou, senhorita Merak. Asseguro que é uma boa moça. — Ela defendeu.

— Oh! — Cobri a boca, como se estivesse muito assustada. — Não se preocupe, apenas pensei que era uma jovem que conheci certa vez, cuja companhia eu muito apreciava. Sinto muito, senhora.

Virei as costas para não chamar mais a atenção. Alice não mudou em essência, apenas alinhou seus objetivos. Era a mesma pessoa determinada, e livre. 

Ana Merak - Dever e HonraOnde histórias criam vida. Descubra agora