ANOS, A NÓS.

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— Não estou disposta a ir, pai. — Reclamei enquanto apertava meu ventre dolorido, inchado e sensível debaixo do vestido que já estava apertado para mim.

— Infelizmente para nós, não haverá justificativa que faça o seu avô desistir de levar você com ele, Ana. — Meu pai, com sua maneira comedida de ser, lançou um olhar sobre mim. — Às vezes me arrependo amargamente por ter deixado você sair do castelo.

Sorri. Derramei toda a ternura que meu coração guardava pelo meu tão dedicado pai. Aproximei-me de sua figura e o abracei com força; ato que foi retribuído. Minha cabeça já alcançava a altura de seu peito. Os primeiros tufos grisalhos já apareciam em sua barba e seus cabelos, mas ele arranjava formas de esconder, às vezes usando colorantes de caráter duvidoso. Muitas vezes, na verdade. Era um vaidoso.

— Será deveras cansativo, entretanto dedicarei toda a minha educação. Ainda que contra a vontade e com medo da sociedade daquele lugar. — Suspirei e soltei meu pai. Olhei para os livros da biblioteca. Aquela câmara com um imutável cheiro de papel velho e madeira.

— Olha você, agindo como um projeto de pessoa crescida. — Papai riu, exibindo seus dentes alvos, cuidados com esmero.

— Sou já uma mulher, pai. — Plantei as mãos nos quadris para passar seriedade.

— Oh! Ana, Ana... Que o Senhor nos livre de uma passagem de tempo tão rápida. Aproveite a sua meninice, pois o tempo não volta. Uma vez adulta, até a morte condenada. — Ele exibiu um sorriso terno e cruzou os braços.

— O que isso significa? — Abri a caixa do meu herbário e alisei a capa. As páginas já se tornaram irregulares porque passei a preenchê-las com certa intensidade.

— No devido tempo você saberá. — Ele olhou para a ponta de sua bota rústica e suspirou.

— O que devo colocar em minha bagagem para a viagem? — Andei até a porta com o herbário debaixo do braço, mas voltei e depositei ele na caixa.

— Deixe que eu apronto a sua bagagem, Ana. — Meu pai pareceu muito cansado, pela primeira vez em algum tempo. Eu sabia que ele não queria que o meu avô me levasse junto naquela viagem de negócios, porém o velho Barakj queria que eu conhecesse mais do mundo. — A quantas anda seu projeto de pintura?

— Quase pronto. — Contei, sucinta.

A tela estava descansando em um cavalete no meu ateliê, para a camada de tinta secar e eu adicionar outra. Aquele era um espaço novo para mim, e quase sagrado. Era um lugar com vista para o jardim, de onde eu podia pegar luz em quase todas as horas do dia e da noite. Era perfeito. Ali eu tinha paz para libertar meus sentimentos, como a saudade. Meu avô comprou muitos materiais de pintura, e sempre trazia outros novos. Tudo o que artistas diziam que era bom ele arranjava igual para mim.

— Vou passear pelos jardins. — Avisei enquanto saía da biblioteca. Era uma atividade comum, principalmente quando eu estava procurando por ervas.

— Não vá sozinha. — A voz de meu pai soou pesada, como sempre soava. Por mais que o tempo tivesse amenizado seu medo, nunca tinha dado fim a ele.

— Guarde as suas preocupações, homem. Não há lugar mais seguro do que o Castelo Merak! — Brinquei, já saindo pela porta.

A voz de meu genitor me alcançou no corredor.

— Nunca se sabe onde o mal está, Ana! Se olha uma vez para frente...

— Olhe duas vezes para trás! — Completei com um berro.

Acelerei os passos até chegar na cozinha, onde Solis estava ocupada com a sua lição do dia. Ela estava aprendendo receitas tradicionais para um ritual que teria em breve. Ela não explicou detalhes, parecia ser algo reservado à família dela. Não quis incomodá-la. Ninguém me chamou para fazer algo, então não precisavam de mim.

Ana Merak - Dever e HonraOnde histórias criam vida. Descubra agora