A verdadeira Anastasia

20 4 3
                                    

De Anna para Laís

Enquanto meu corpo magricelo se espremia nas paredes de concreto daquela passagem secreta do palácio, podia ouvir a voz assustada de vovó ecoando por todo o túnel abafado.
Tiros e mais tiros vinham da sala de papai. Eles estavam me procurando. Procurando a garota problema para puní-la por ser...diferente?
A política do amor ao próximo já não fazia mais sentido com todo aquele alvoroço.
Assim como eu, vovó não sabia o que fazer além de correr. Nós corríamos tão rápido quanto um projétil acertando seu alvo e o fazendo se espatifar no chão.(entenda isso é realmente muito rápido para nós)
Meus pés doíam tanto. -Provavelmente já haviam alguns calos-, e meu coração parecia estar entalado de maneira desconfortável na garganta.
Juro que estava prestes a vomitá-lo se precisasse correr mais e por muito mais tempo do que desejávamos.
Minha respiração ofegante dava nos nervos, as pernas bambas e vacilantes de tanto apressar os passos me causavam uma sensação ruim e a garganta seca já arranhava pela falta de água.

Medo do que estaria por vir,

Medo

de ser, estar e sentir.

Alguns dos Russos haviam descoberto meu maior segredo: eu gostava de meninas. Mais precisamente, de Evia, minha melhor amiga de infância.
Por sorte ela havia se mudado para Paris um pouco antes de toda bomba acontecer: fui de Grã-Duquesa da Rússia à "filha lésbica depravada" de Nicolau II. Filha essa que, provavelmente, estaria morta em pouco tempo.

Queimada em praça pública,
Arrasada pelas palavras,
Dolorida pelas humilhações,
Descreditada por sentir.
Era errado, afinal?

Assim que vovó e eu escutamos mais um disparo vindo de longe e ecoando por todo o túnel, percebemos que os homens maus haviam encontrado nossa passagem. Apertamos ainda mais nossos passos até que, finalmente, chegamos na estação ferroviária. Famílias andavam de um lado para o outro desesperadas com algumas maletas em mãos e falavam alto demais. Pediam ajuda para os céus enquanto derramavam lágrimas tão pesadas quanto seus sentimentos.
Era o efeito do medo que corria por suas veias. O mesmo medo que também corria pelas minhas.

       🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈
Mesmo com toda aquela quantidade absurda de pessoas entrando no trem ao mesmo tempo, vovó e eu conseguimos garantir um bom lugar.
Me recostei na poltrona do trem e fechei os olhos, sentindo a brisa leve ir de encontro com meu rosto suado e amenizando toda a quentura que havia em meu corpo.
Finalmente havia conseguido pegar aquele trem, aquele mesmo trem que estava repleto de pessoas carregando medos, angústias e histórias dentro de pequenas maletas e que cheirava a algum tipo de remédio esquisito para dor, partia de São Petersburgo e tinha como destino Paris.

Cidade Luz. A cidade dos artistas, dos amantes, dos vivos e dos que desejavam viver.

      🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈

Passar horas e horas dentro de um trem não era nada confortável, afinal. E, aparentemente, o itinerário havia sido trocado já que os homens maus insistiam em me procurar. Ter a cabeça cortada era o preço que estaria pagando por amar Evia, mas prometi por nós duas que estaria em Paris com ela. Nós, o medo deixado de lado e a sensação de liberdade dando um olá sussurrado nos ouvidos, como uma música.

Era o que eu precisava: liberdade de ser e estar.

Encarei vovó por alguns segundos. Seu semblante assustado havia se transformado em paz quando ela notou que já não estávamos mais em São Petersburgo. Mesmo que soubesse que ainda estávamos na Rússia, ela parecia estar aliviada.

— Vovó? - a chamei baixinho.

— Diga, querida. - ela sorriu fraco.

— O que você faria se...eu...uma de suas netas gostasse...de...m-meninas? - as palavras saíam de meus lábios quase como um engasgo e ela se levantou de sua poltrona e sentou ao meu lado.

— Ora, minha querida. Eu te abraçaria exatamente assim - ela envolveu os braços em meu corpo — E diria que tudo está bem, porque, verdadeiramente, tudo está bem.

Eu sorri.

— Anastasia, eu sempre soube que você não era uma menina comum, entende? Sempre tão animada, tão sapeca, sorridente e tentando fazer o máximo para que todos estivessem felizes. Você é muito mais do que gostar de pessoas, sejam elas iguais ou diferentes. Você é seu coração, sua alma, sua essência. E é por isso, por ser quem você é, que te amo.

     🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈🏳‍🌈

Quando chegamos na Cidade Luz, já era de manhã. Não havia conseguido pregar o olho imaginando Evia.
Assim que o trem parou na estação, nós saímos devagar. Os meus olhos cansados tentavam encontrar meu porto no meio de toda aquela multidão.

Então, foi quando a vi. Bem na minha frente, ao vivo e em cores, e muito mais bonita do que eu era capaz de me recordar. Naquele momento, nós nos abraçamos tão forte que quase pude sentir nossos corpos se tornando um só.

— Eu senti tanto a sua falta. - ela murmurava. — Você não sabe o quanto meu coração ficou apertado vendo todas aquelas notícias, meu amor.

— Shhh. - coloquei meu dedo indicador em seus lábios, a calando. — Eu estou aqui agora. Nós estamos aqui, juntas.

Nossos lábios se chocaram e eu pude sentir a doce sensação da liberdade.

Eu finalmente podia ser a verdadeira Anastasia.
Eu finalmente podia ser, estar e sentir.

Amigo Oculto LiterárioOnde histórias criam vida. Descubra agora