WENDIGO

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E foi assim
Por: Sandy Azevedo
Para: Felipe
Tema: o homem que se tornou besta - Wendigo

“– Filho, você foi escolhido em meio a milhares. Isso é louvável. Finalmente você pode provar a todos seu valor ao defender um país.

– O problema é que não estou defendendo meu país. Vou derramar meu sangue e posso perder minha vida e não é em nome da minha nação! – falei exasperado ao meu pai.

– Os Estados Unidos é uma das maiores, se não, a maior potência mundial. O Brasil está ao seu lado nessa briga contra a Coreia do Norte. A vitória é certa. Imagina como cresceremos quando isso acabar? Aliás, Donald Trump não gostou do Brasil ter cedido apenas ¼ do seu exército de apoio, mas você está dentro desse número. Entende o quanto isso é importante?

– Lógico que o Brasil cederia esse número. A Coreia do Norte pode nos atacar, já que não somos tão fortes e nos desestabilizando, como somos um dos aliados dos E.U.A., acabam atingindo ele também. O problema é que eu não estarei aqui justamente para defender o Brasil, mas estarei lá defendendo um país que não é meu por um futuro econômico incerto, que talvez nem esteja vivo para desfrutar.

– Mas talvez nós estejamos aqui. Eu serei conhecido como o pai daquele que venceu a guerra. Você calará a boca de todos que sempre foram preconceituosos. Você provará a todos que, mesmo sendo homossexual, é forte o bastante para lutar em nome de um país.
– Não tenho que provar nada a ninguém, mas sempre achei que fosse o bastante para o Senhor.”
Essa é última lembrança do primeiro homem que amei com sinceridade: meu pai. Foi aí que o perdi.

“– Por que você tem que ir lá? E o réveillon?

– CF2, não posso fazer nada. Nosso país prega a democracia, mas obriga o alistamento militar, obriga a votação, não cria e nem aprova leis que a população está cansada de pedir, como a maioridade penal aos 16 anos...

– Eu sei, mas não vou segurar meu futuro se você não estará nele CF1.

Esse dia era a véspera do réveillon e meu namorado estava se despedindo de mim, que estava com o destino traçado aos Estados Unidos. Sempre brincávamos, pois me chamava Cléber Felipe e ele Cláudio Fernando. Chamávamo-nos, então, de CF’s. Essa foi a última lembrança que tive do segundo e penúltimo homem que amei, mas não tinha amor o suficiente para retribuir. Foi aí que o perdi.

“– Pedro, tente ficar o mais imóvel possível. Você tem que resistir a isso. Acabou tudo, mas ainda temos um ao outro. Não quero que o ‘nós’ passe a ser apenas ‘eu’. Resista!”

O exército brasileiro foi dividido em grupos e reunido com o exército norte americano. A guerra estava intensa e os ataques eram severos. Mísseis, bombas e tiroteios. Os E.U.A. pareciam ganhar, mas nesse momento éramos mais defensores do que atacantes. Minha equipe foi morta.

Alguns morreram em cima de minas, ao passarem com o comboio. Outros em tiroteio. Era janeiro e o inverno no estado de Minnesota, para onde nosso grupo foi, era severo demais. Os brasileiros, em especial, não estavam resistindo muito. Vivíamos em um país tropical e não em um com neve até os joelhos e temperaturas muito abaixo de zero.

Eu estava resistindo porque, não sei se é mito ou não, mas dizem que os negros são mais fortes. Se a cor ou raça influenciam, eu não sei. Mas eu era alto, forte, devido aos exercícios constantes no exército, cabelo curto, olhos pretos e pele negra, agora marcada por cicatrizes de guerra.

Só restaram eu e Pedro.

Precisávamos chegar a base de apoio, mas estávamos muito longe. Eu havia perdido a direção com tanta neve e silêncio. Eu tentava inutilmente arrastar Pedro. Uma granada foi lançada onde estávamos antes e alguns soldados morreram. Eu não fui atingido, mas Pedro perdeu parte de sua perna e, agora, estava desmaiado de dor.

Acendi uma fogueira discreta em meio a uma cratera para não chamar muito atenção. Era uma tarefa difícil. A madeira estava molhada e eu tinha poucos recursos, mas consegui. Fui até Pedro e ele ainda estava inconsciente, mas estava com respiração fraca.

Em meio a guerra, solidão e morte iminente acabamos nos apaixonando, mas sentia que estava prestes a perder mais um homem em minha vida. Peguei o canivete que tinha, o esquentei na fogueira, quando atingiu o ponto, coloquei-o na perna de Pedro para cauterizar. Ele que, até então, estava desacordado, gemeu em desespero, mas ainda não acordou. De repente escutei um estouro. Fomos descobertos. Olhei para cima e algumas árvores caíram sobre nós, deixando-nos em completo escuro.

Usei toda minha força para levantar a madeira, mas não consegui. Eu ia morrer.
Passaram-se um dia, dois, três... Eu pegava a água formada pela neve e bebia, mas estava fraco demais. Não sei como, mas Pedro permanecia do mesmo modo.

Tinha dia que o fogo acendia e tinha dia que não. Eu estava fadado a morrer, tentando viver.

Quando passaram-se quase um mês eu não me reconhecia. Dormia e orava que não acordasse. Eu estava preso em um buraco sem beber, sem comer, sem luz, quase sem calor. Eu queria morrer.

Quando completou um mês e uma semana, não sabia quem era. Não dominava o que fazia. Um instinto primitivo tomou conta de meu corpo. Senti-me morto, querendo comida a todo custo, mas só tinha uma coisa para me alimentar: Pedro.

Com um grito e força sobrenatural, enfiei com toda a força minha mão em suas costelas e arranquei seu coração que ainda pulsava fracamente. Olhei para aquele líquido rubro escorrendo em minha mão e minha visão mudou. Comi o coração de Pedro, que por breves dias me pertenceu em sentimento e agora, em alimento. A fome era tremenda. Comecei a desossa-lo e em dois dias só sobraram seus ossos e cartilagem.

Agora eu não era mais humano, não era mais Cléber Felipe... Eu era um Wendigo. 

Pulei para fora da cratera. Minha força estava tremenda. Eu corria velozmente e podia carregar pesos extremos. Por dias cacei animais, mas meu corpo não vibrava tanto como quando me alimentei de Pedro. Então tive uma ótima ideia: aproveitar a guerra.

Percebi ao longo dos dias que minha inteligência era apurada e que conseguia imitar vozes.

Chegava sorrateiramente próximo às equipes inimigas e falava como um deles, ordenando que se aproximasse e então eu os comia.

O que mais havia naquele lugar, eram humanos dispostos a morrer, então passei a estocar minhas vítimas em minha caverna subterrânea.

Os E.U.A. estava ganhando força, com soldados inimigos perdidos na guerra. Culpavam o inverno rigoroso. Com tanta neve era difícil acharem os corpos.

E assim passei a viver... E assim, a besta em mim surgiu... E assim, agora eu me tornara um mostro.

Pedro foi o último homem que amei, mas levou com ele minha alma e minha humanidade. E foi assim que o perdi. E foi assim que me perdi.

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