Bring me to life - Evanescence

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TRAGA-ME PARA A VIDA
UM CONTO PARA BIA (MEG CASEY)

Acordou sem gosto na boca. Mais uma vez teria de procurar algo que não sabia. Levantou despenteada. Cabelos loiros, pele clara. Olhos azuis perdidos na imensidão de seu vazio. Quis cantar, mas não lembrava nenhuma canção. Seu toca-discos não funciona mais. Nunca foi adepta da modernidade, não aderiu aos CDs. Suas pernas estavam fracas, mas que importa? Ninguém a acariciaria. Não lembrava seu nome, afinal não havia quem o chamasse.
Mas naquela manhã acordou diferente. Não havia gosto em sua boca. Lembrou-se então de que sentia sede. Desceu as escadas. Nos pés, as meias coloridas com que dormia todas as noites. Viu no aparador a fotografia de um antigo namorado, mas não conseguia lembrar-se da voz dele.

— Não se martirize. — ela lembrou-se a si mesmo. — Ninguém vai salvá-la.

Lembrava-se de poucas coisas. Todas elas sem interesse para os outros. Lembrou-se novamente de que tinha sede. Entrou lentamente pela cozinha e pegou um grande copo listrado que ganhou da avó. Bebeu lentamente com o ar solene que lhe era habitual. Não sabia, mas havia matado a sede.

"Já se sentiu como um ninguém? Como se todos ficassem rindo da sua cara? Como se todos fingissem te entender?"

Por um instante cantarolou uma canção, mas não lembrava a letra. Teve fome. Havia dois dias que não comia. Abriu a geladeira, estava vazia. No armário encontrou torradas, estavam amolecidas, mas não importava. Comeu-as sem prazer. Não sabia, mas havia matado a fome.

"Gostaria que os sonhos não fossem simples sonhos. Gostaria que a realidade não fosse tão violenta e insensível. Gostaria que não houvesse falsidade, que a imaturidade dos outros não me atingisse. Gostaria que o amor não fosse um sentimento tão profundo a ponto de nos corroer por dentro e de nos dilacerar por fora. Gostaria que a vida fosse como nas novelas: ocorrem os piores conflitos, mas sempre acabam em finais felizes e os vilões ou são presos ou comidos por um tubarão".

Ouviu um barulho, não sabia de onde vinha. Passou pela sala com as meias coloridas. Abriu todas as gavetas, o velho armário, mas nada encontrou. Tudo cheirava a mofo, mas não se sentia sufocada.

"Você sabe o que é estar feliz, de verdade? Você jé esteve feliz de verdade? Não por um dia, ou um minuto... mas por um grande tempo, quando você acha que vai ser feliz para sempre, que estará ao lado das pessoas que você ama até a morte. E quantas vezes você jé pensou que ia ser amigo para sempre? E quantas vezes você achou que ia amar para sempre?"

Abriu a pequena porta que fica embaixo da escada. Estava escuro, mas não teve medo. Destampou um velho caixote de madeira e encontrou o que estava fazendo o barulho. Uma velha caixa de música enferrujada que tocava sem ninguém dar corda. Não era o som agradável de antigamente, mas tocava.

"E quantas vezes seu coração foi despedaçado e você achou que ia sofrer para sempre? É mais fácil ser feliz ou infeliz? Quantas vezes você jé apontou a pessoa errada como seu melhor amigo, como seu grande amor, como o dono da sua confiança? Quantas vezes você jé chorou, e quantas vezes você ainda vai chorar por fazer as escolha errada, e confiar na pessoa errada?"

Não sabia, mas havia matado a curiosidade.
Sentiu repentinamente falta de sexo. Ligou para um garoto de programa qualquer, que entrou sem lhe olhar nos olhos. Fez o que havia de ser feito, tomou banho e foi embora. Ela nada sentiu, apenas acalmou seu desejo animal.

"Você está gritando por dentro, implorando por alguém que possa enxergar algo além de seus grandes olhos escuros e toda a felicidade fingida que você demonstra sentir. Perguntado-se se vale a pena levantar novamente e lutar contra a escuridão que envolve cada pequena parte do seu ser, pouco a pouco. Um pequeno lado seu deseja sentir algo enquanto o outro insiste em se manter como uma preciosa pedra intocável e sem brilho. Você não está cansado de se segurar?"

— Traga-me para a vida. — ela gritara sem emitir som nenhum. — Eu tenho vivido uma mentira. Não tem nada dentro de mim.

Chovia lá fora. Uma chuva fria e dissimulada. Teve frio. Vestiu um velho casaco de lã, cheirava a naftalina, mas não espirrou. Não sabia, mas havia matado o frio.
Queria dormir, mas o sono não vinha. Deitou-se. Rolou para todos os lados: de bruços, de lado, cruzou as pernas, os braços, os dedos, e nada. O sono não vinha. Lembrou-se então de velhos comprimidos que estavam na bolsa. Tomou-os sem fé que funcionariam. Nunca acreditou na ciência. Duas horas depois dormiu.
Não sabia, mas havia se matado. Apesar de toda essa adrenalina, mais do que nunca, ela estava em paz. Se sentia livre. Ela estava feliz. Essa foi a última coisa que passou em sua cabeça antes de ela partir. Ela finalmente estava feliz.

Amigo Oculto LiterárioOnde histórias criam vida. Descubra agora