A dama preciosa

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One shot de Lucas para Rosie

inspirado em E o vento levou

Tínhamos tudo, trocamos tudo por nada. Nossa ambição tributou nossas riquezas e conquistas para um vazio obsoleto repleto de fome, escuridão e dívidas. Eu tinha um pai e um irmão mais velho, agora só tenho memórias guardadas e preciosas, tão mais valiosas quanto jóias ou qualquer quantia do mundo. Nós tínhamos tudo.
Tudo começou em uma festa dada por um dos nobres de meu pequeno reino. Nossa população se sustentava através de plantações e criações de gado, até algo chamado tecnologia chegar ao nosso mundo. Não culpo do primeiro cientista inventar uma geringonça para nos ajudar nos afazeres da fazenda, mas nem todos tinham condições de comprar algo assim. Meus olhos esverdeados, como um dia foram as folhas saudáveis das mais belas árvores, viu àquela tecnologia pela primeira vez em forma de um veículo um tanto quanto utilizável: um belíssimo trator. E com ele, nossas fazendas e riquezas foram ganhando mais valor, mais espaço e trouxe as famílias para um reconhecimento e prazeres sociais. Mas, é preciso voltar a data da festa.
Um homem rico nunca dá uma festa para todos, não que ele não possa, mas nós humanos sempre guardamos algo por trás de nossas escolhas e ações. O Senhor Grunchov era o mais rico de meu país, com vinte e duas fazendas bem distribuídas e de valor enorme. Também possuía em sua posse muitos escravos, mulheres, homens e jóias. A festa que dera em seu casarão não era para comemorar sua riqueza, mas sim explicar o que todos nós guardávamos dentro de nós, uma ambição. O Senhor Grunchov era visto como um homem de bastante cortejo, todavia, um ótimo invejoso. Ele era o melhor no que fazia, invejar.
— Bem, meus amigos. Ofereço o banquete, os prazeres luxuosos de minha mansão e, todavia, minha amizade, à troco de uma negociação formidável pela fazenda de cada um de vocês. — Disse Senhor Grunchov à todos os sessenta convidados, fora seus escravos e homens.
Lembro que quando meu pai, trajado de um terno preto com um tecido invejável e minha mãe, com seu belíssimo vestido sem decote e com babados em suas bordas, se revoltaram com a notícia. Não só eles, mas quase todos os outros que não pertenciam a classe dos maiores fazendeiros. Quer dizer, como iam se tornar grandes se vendessem suas terras? Serem acolhidos no enorme casarão da Família Grunchov e receber uma oferta daquelas? Era de toda valia? Eu era muito pequeno para entender. Porém, meu irmão entendia muito bem.
— Como ousa? Meu pai não deve vender sua fazenda para satisfazer teus lucros, Grunchov! — Gritou meu querido e amável irmão. — Nenhum de nós.
Meu irmão mais velho, Cornell, era o maior homem de todos, até mais que meu pai. Meu irmão brincava comigo, construía e me ajudava a construir brinquedos de madeira. Me ajudava com o terno, com o sapato social e minha conduta em almoços e jantares de negócio. Ele foi o primeiro a ser morto.
Como meu irmão foi morto? Bem, lembro que nós humanos trocamos tudo por nada. A ambição do Senhor Grunchov trouxe a guerra civil até nós. Com sua oferta veio a inveja, a raiva, a ambição por mais terras e, acima de tudo, honra masculina.  Oras, ele queria comprar as terras até de seus melhores amigos, tais como meu pai. E os que não queriam vender, bem, eram ameaçados. Então, um aglomerado de fazendeiros, escravos e trabalhadores se revoltaram. Decretaram guerra uns aos outros. Meu irmão foi abatido como um gado prestes a ser sacrificado por um bom churrasco, morto porque meu pai não queria vender nossa fazenda.
Nós tínhamos tudo.
Dias de paz plena se foram. Meu café da manhã era acompanhado com gritos que surgiam de longe, de cavalos relinchando de medo e com minha mãe rente a janela, roendo as unhas de nervoso e tristeza. Até com medo ela era uma negra linda. Delicada, gentil e amorosa até com nossos escravos. Minha mãe nunca levantou a mão para ninguém, assim como meu falecido irmão. E lembro exatamente deste dia, quando minha mãe desceu as escadarias de nossa mansão, e então, a porta do hall de entrada se abrira de uma forma violenta. Era um dos escravos de um fazendeiro conhecido nosso, armado com uma espingarda. E com ela apontada para minha mãe, efetuou disparo. Minha mãe caíra sobre os degraus, inconsciente e de olhos abertos para nosso teto, o qual havia uma pintura de anjos sobre as nuvens. Por baixo das nuvens havia guerra, e em seus pequenos detalhes estava presente os sete pecados capitais.
Não só minha querida mãe tinha morrido, mas todos os escravos amigos nossos. Um deles até tentou me salvar, mas acabou com o mesmo destino que a maioria dos que viviam em minha casa. Por fim, sem que eu conte de uma forma triste o fato à seguir, me tornei escravo de um dos fazendeiros. Meus dias de ricos chegaram ao fim.
Me tornei um escravo, levado para longe, pois um senhorio queria preservar os mais novos para depois da guerra. Eu era o único de quinze anos dentre os mais velhos. Fomos levados para uma fazenda que não conhecíamos, mas, conhecíamos o proprietário dela: Senhor Gunchov. Lembro-me muito bem que, em um dia quando estavam organizado as fileirinhas de escravos novatos, ele enxergara meu rosto com uma certa surpresa, e depois riu. Devia ser uma bença ver o filho de um de seus concorrentes como escravo. Eu percebi então que eu e os outros escravos fomos vendidos.
Não me pergunte nesta carta se eu abati homens que era contra meu senhorio na guerra civil. Não me pergunte sobre meu pai, pois nunca mais o vi. Sobretudo, eu passava as tardes trabalhando em um latifundio, eu e os outros que não estavam lutando por terras. Nós plantávamos cana, café e outras coisas a mais. Todos os dias eu iniciava o trabalho com uma camisa surrada e calça suja, sempre descalso. Meus pés sentiam o solo arenoso e facilmente maleável, pois a inchada o incomodava todos os dias. A água era pouca, e dia após dia ela se tornou nada. Quando conseguiam água para nós, brigas aconteciam por ela. E além da Guerra Civil, eu enfrentava uma luta entre os escravos por comida.
Certa vez, em uma noite de silêncio e frio, eu estava deitado no chão frio de um porão abaixo de um estábulo. Era o lugar onde os homens do Senhor Grunchov guardava os suprimentos em falta. Eu me lembrei disso. E no meio de vários homens e mulheres escravos que dormiam, levantei-me e segui com cautela até um amontoado de feno que havia ao canto de uma das quatro paredes. Movi os blocos de feno com imenso cuidado, ninguém podia acordar. Movi os fenos até aparecer uma passagem ao chão, protegida por uma porta que se parecia muito com o solo em que dormíamos. Eu a abri, e um barulho alto fôra feito, acordando a maioria dos escravos que dormiam.
Alguns bocejaram, outros me olharam com uma certa surpresa no olhar. Um deles me perguntou como se eu fosse o único errado em toda aquela realidade:
— O que pensa que está fazendo? Se eles souberem disso, vamos todos ser fuzilados.
— Cale-te, imundo. Eu estou tentando fazer o que nenhum de vocês teve coragem de fazer.
— E o que é?
— Não é óbvio? Estou tentando escapar daqui. Somos a maioria. Se não souber, estamos em maior número, e ao contrário deles que só tem armas para se defender, nós temos companheirismo e uma boa causa para lutar.
— Lute sozinho, burguês! — Disse o escravo, assim se virando para voltar a dormir de bruços. E sinceramente, adorava o modo com que me chamavam. — Isto não vai dar certo.
— E como quer lutar? Aceitando o modo como tratam à nós? Não sou só eu o antigo burguês, mas vejo outros que também foram. É errado eu querer minha posição social de volta?
Estávamos conversando alto demais, o suficiente para que um dos homens de Grunchov aparecesse com uma espingarda. A arma estava apontada para mim, pois eu devia ter descoberto algo que eles não queriam que soubéssemos.
— O que está fazendo, escravo?
Me surpreendi. Um dos escravos avançou contra este homen e o golpeou no rosto, fazendo-o cair inconsciente sobre a espingarda. Então, pegou a arma de fogo e a olhou por alguns momentos com uma certa beleza no olhar. Eu não iria duvidar dele tentar se emponderar de nós, pessoas que não podiam se defender de balas frias e pontudas. Contudo, ele apenas olhou para nós e sorriu, moveu a cabeça para fora do estábulo e mandou que todos nós o seguisse. Eu deixei aquela descoberta de lado e o segui, coisa que todos os outros fizeram.
Passamos a noite caminhando entre a mata e corpos mortos deixados pelas batalhas do dia. Existia possibilidades de caírmos em uma emboscada e voltarmos para nossa vida escrava, mas tínhamos de arriscar. Mas a ambição tornou a aparecer, desta vez a vi como uma mulher branca de olhos vermelhos e lábios carnudos. Me apaixonei pela ambição. Eu invejava vê-la com um vestido vermelho de decote, com mangas e as bordas da parte da saia com babados negros. Ela tocou o ombro de um dos escravos, e depois ele avançou contra o escravo que carregara consigo a espingarda. Eu não pude impedir a ação de um deles pegar uma pedra sobre o chão e batê-la repetidamente contra a cabeça de seu próximo até matar o coitado, tudo por conta da espingarda. Eu não me preocupava com isso, pois queria ter a ambição para mim, de corpo e alma. Segurar os cabelos negros e beijar o pescoço, puxá-lo para dentro de mim em um desejo carnal cujo qual nunca havia aparecido antes. Então, quando àquele escravo manejou a espingarda e assustou todos os outros, eu avancei contra ele. Tratei de pegar o cano da arma, jogar para o lado e socar a boca do estômago. Depois segui o punho para um lado da bochecha, depois para o outro, e por fim, dar uma cotovelada em sua testa. A ambição seria minha, somente minha.
Tratei de sorrir para os outros escravos, mas não queria libertá-los. Eu iria vendê-los. Isso, vendê-los. Eu veria aquela mulher branca novamente, não me importava o que acontecesse. Eu me casaria com ela, teria filhos com ela. Da ambição vem a morte, vem a vida, vem o sucesso e o fracasso. Eu mataria todos esses sentimentos para ficar com ela. Pareceu loucura no momento, mas não era.
Eu apontei a espingarda para meus colegas.
— Vamos voltar para o senhorio.
E fizemos.
Voltamos de onde viemos. Corpos mortos no chão, armas descarregadas, munições por todos os lados. Cheiro de terra queimada, meus pés sentindo a terra encharcada de sangue frio. Eu me apaixonei por algo que não existia? Eu não sei. Mas vi homens brancos armados no portão da fazenda do Senhor Grunchov. Não me importava, meus negros estavam à frente de meu corpo e pareciam se sentir cercados pelo cano de armas.
— Largue a arma, escravo! — Disse um dos homens para mim.
— Eu vim vendê-los.
Ele riu de mim, as armas deles riam de mim. Eu não me importava, pois a vi atrás deles. A ambição sorriu pra mim e à partir deste momento senti um frio em meu peito, ou um baque. Eu estava realmente apaixonado por ela. Então, como uma forma de adiantar a negociação, atirei em um dos escravos pelas costas. Os outros gritaram e os homens brancos se chocaram com minha ação. Bem, foi algo idiota, pois atiraram em mim com todas as munições possíveis.
A ambição desapareceu para mim. Meu corpo era perfurado por balas frias e de prontidão o sangue quente escorria pelos espaços abertos. Eu não conseguia respirar, mover um musculo sequer. Cai para trás, sentindo quase nada em meu corpo, nem o baque, nem o cuspe que os escravos jogaram em meu corpo.
O céu estava negro, mas ficara mais negro ainda, até tudo ao meu redor ficar da cor da minha pele. Eu fui traído por mim mesmo e pela minha amada ambição. Eu morri esperando o melhor de mim, e o que eu criticava passou a tomar conta de meus sentimentos. Ela me deixou, assim como eu me deixei.

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