De Laís para Felipe
Quando o despertador toca, não tem jeito. É hora de levantar da cama para iniciar mais um dia, mesmo que o sono e a vontade de permanecer na cama sejam os maiores inimigos logo no começo do dia.
Depois de desligar o alarme insuportável do celular e levantar da cama, caminho no modo zumbi até o banheiro. Já que durmo sem roupas, meu único trabalho é girar o registro do chuveiro e enquanto sinto a água morna bater no meu rosto, percebo que aos poucos a vivacidade vai dando as caras para me ajudar a enfrentar mais um dia longo.
Após tomar uma xícara de café com leite e deixar um sanduíche mordido sobre a mesa, corro até o ponto rezando para que a condução não tenha passado antes da hora. Quando vejo o ônibus virando a esquina tenho certeza que esse será um dia de sorte.
Após duas horas de viagem chego ao trabalho e vou direto para o vestiário me trocar. A farda já está passada, mas ainda assim dou uma última checada antes de vesti-la.
– O curso já acabou há dois anos, Vargas – zomba o Oliveira, ao me ver analisando a gandola. - O Sargento não vei te constar se ver um vinco na sua farda.
– Eu não faço isso por medo, Oliveira – respondo, dando fim a conversa.
Ele dá de ombros e vai embora, talvez me achando antipático ou antissocial. Na verdade, sua opinião pouco me importa. Tudo o que eu faço é para me proteger e a quem eu amo, mesmo que essas atitudes possam ser mal interpretadas pelos meus "irmãos de farda".
Passei no concurso da Polícia Militar há quase três anos, quando recém acabei a faculdade de Administração. Esse sempre foi meu sonho e lutei muito para conseguir chegar onde cheguei. Logo na primeira semana do curso de formação notei que as coisas não seriam fáceis. Os sargentos testavam o nosso psicológico todo o tempo, colocavam-nos no limite do suportável o que me fez pensar em desistir um milhão de vezes. Mas essa não era a pior parte, nem de longe.
Para um gay, aquele era praticamente um ambiente hostil e por isso nunca me abri sobre isso para ninguém da corporação. Desde o primeiro dia ouvi todo tipo de zombaria sobre gays e – mesmo que eles não saibam disso – a carapuça sempre me serviu muito bem o que fez com que eu me afastasse dos meus companheiros aos poucos, até não sobrar quase nenhum amigo.
Talvez você esteja pensando que eu sou medroso em não assumir o que eu realmente sou e eu sou mesmo. Depois que você sente na pele o que as pessoas são capazes de fazer com alguém com interesses afetivos diferentes dos delas, você provavelmente também teria.
Na faculdade fui espancado por um grupo de imbecis que acreditavam ser melhores do que eu por gostarem de mulheres. Como se pudéssemos ser julgados por quem amamos ou deixamos de amar. Até tentei usar esse tipo de argumento, mas contra trogloditas as palavras são desnecessárias e enquanto eles chutavam minhas costelas cheguei a pensar mesmo que eu era pior do que eles.
Quando os tiraram de cima de mim já era tarde. Enquanto eu saí da briga com cinco costelas e os dois braços fraturados, concussão, um corte extenso no tórax e suspeita de hemorragia interna, eles pagaram algumas cestas básicas e provavelmente ainda continuam assombrando a vida de pessoas como eu.
Não me dei por vencido e continuei vivendo a minha vida sem me importar com o que os outros pensavam sobre mim. Pedi transferência para outra universidade e segui a minha vida, até que o inevitável se repetiu. Mais um grupo de homofóbicos e mais fraturas e hematomas. Desta vez fui para a UTI com traumatismo craniano e não sei como escapei sem sequelas.
A partir deste dia decidi que ninguém que fosse importante na minha vida merecia saber sobre as minhas escolhas. Fechei-me no meu mundinho e não falei mais sobre isso com ninguém além da minha família.
Sigo até a viatura e espero pelo meu parceiro, que não demora a aparecer.
– Pronto para mais um dia? - pergunta o Cabo Ramos.
Presto-lhe continência e seguimos para mais uma ronda. Os dias de serviço são longos e cansativos graças a isto. Ficar rodando pela cidade atrás de qualquer coisa suspeita é chato, mas necessário. Engatamos em uma conversa sobre a rodada do brasileirão de ontem. Para minha sorte sempre gostei de futebol, o que me ajuda a camuflar minha realidade. As pessoas criam esteriótipos e na cabeça deles, gays só assistem futebol para ver as pernas dos jogadores. Não que eu não goste de vê-las, mas elas não são minha única prioridade.
– Não estava impedido, Cabo – insisto, veemente. - O zagueiro estava dando condição.
– Para de chorar, Vargas. - debocha. - Só porque teu time perdeu, não adianta dar desculpas.
– Não é desculpa – dou de ombros, mas não sou ouvido.
Ele já está mirando uma moça que passa na calçada.
– Olha só que delícia! - exclama, dando-me um tapinha no ombro.
Isso sempre acontecia, independente do companheiro de ronda que eu tivesse. E nunca deixava de ser constrangedor.
– É – concordo, tentando dar fim a esta conversa.
– Qual é, Vargas! Vai dizer que ela não é gostosa pra caralho – ri.
– Já disse que é – respondo, tentando não transparecer meu incômodo, mas não tenho certeza se me saio bem.
Ele me olha de um jeito diferente e a conversa cessa. Talvez ele tenha desconfiado de alguma coisa, mas sigo dirigindo como se nada tivesse acontecido. Com o silêncio constrangedor, o tempo tarda ainda mais para passar, tornando este o dia mais longo do que os demais.
Atendemos algumas ocorrências - acidentes de trânsito na sua maioria – o que contribui para que o almoço chegue mais rápido. Paramos no restaurante e, ainda sem conversar, servimo-nos no buffet.
Quando retornamos para a viatura, noto que ele está inquieto, mas prossigo como se nada tivesse acontecido.
– Tu é veado? - pergunta-me, depois de um longo período em silêncio.
Sua pergunta me pega de surpresa. A maioria das pessoas julga sem ter certeza do que realmente acontece e apenas pede ao Capitão para que mude a escala para que não precise mais trabalhar comigo. Talvez tenham medo que eu os ataque ou sei lá.
Minha demora em responder me entrega e quando noto que não há mais saída, dou de ombros.
– E tu nunca ia contar para ninguém?
– Já me fodi muito por deixar as pessoas saberem sobre isso – torno, sombrio.
Ele me encara, enquanto analisa cada movimento meu. Tento prestar atenção no trânsito, mas está difícil. É a primeira vez que alguém me questiona sobre isso desde que eu optara em manter segredo.
– Tu é um cara legal, Vargas. E eu já percebi o que os caras fazem contigo quando desconfiam – começa, medindo as palavras. - Eu sei que isso é foda e imagino o quanto tu já sofreu com isso tudo. Mas esconder isso só vai fazer mal pra ti.
Engulo em seco, enquanto absorvo aos poucos as palavras do Cabo Ramos. Por mais que eu saiba que ele tem razão, as coisas não são tão simples assim.
– O senhor não tem como saber – respondo.
– É claro que tenho. Minha filha é lésbica – torna enérgico. – Quando eu descobri fiquei doido! Mandei ela embora de casa, xinguei ela de tudo o que eu podia e mais um pouco. Pensei que estivesse fazendo a coisa certa, mas não estava. Na semana seguinte eu já estava arrependido e implorando o perdão dela. Graças a Deus, ela é muito melhor do que eu e me perdoou, mas até hoje eu carrego essa culpa comigo. Agora pensa – diz, segurando o meu ombro. - Se eu que sou pai e a amo acima de tudo, demorei para engolir essa história, imagina os outros.
– Eu sei que o senhor está certo, mas para mim ainda é difícil falar abertamente sobre isso – explico. – Tudo bem. Tudo bem – deu de ombros. - Eu te entendo, rapaz. Tu ainda é muito novo. Mas se precisar de qualquer coisa, eu estou por aqui.
Sorrio aliviado em saber que ao menos uma pessoa nessa corporação tão grande consegue me entender. Talvez sua ajuda seja só da boca para fora, mas para uma pessoa sozinha e desesperada como eu, isso vale mais do que qualquer coisa.
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Amigo Oculto Literário
Short StorySorteio entre amigos do grupo do Whatsapp ajudando escritores, em que cada participante recebe em sigilo o nome de outro a quem deve presentear com uma one shot.